As Histórias de Faeln'hera
Prelúdio
- Kiloren e Philorem
-
As belas
terras das montanhas de Ânli.
Nelas se
inicia Fel-nior, e delas nascem dois rios, um para sul, Cän-lalei, e Theör,
para norte. Situam-se em Mantisot, a terra mais a sul de Fel-nior. Extremamente
quente no verão, e cheia de tormentos no Inverno, mas todas as estações têm uma
beleza inigualável.
No Inverno, os
cumes mais altos deixam de se ver. Todas as montanhas se enchem de neve. Um
manto branco que enche de esplendor e magnificência todo aquele cenário. Um
verdadeiro marco para quem desconhecia a zona onde entrava.
No verão, os
cumes mais altos vêm-se, cobertos de neve, mas todo o resto enche-se de relva,
e arbustos com doces e sumarentos frutos da época. Descobrem-se grutas e
entradas para largas cavernas, que escondem incontáveis tesouros, de beleza
incontável.
Algumas destas
grutas, e cavernas, emanam um brilho tão intenso, que este brilho se prolonga
para fora das próprias grutas, iluminando o exterior, cada um com a sua cor.
Uns têm um tom azulado, outros um tom esverdeado, outros um tom arroxeado, acinzentado,
dourado, entre outros. Uns emitem mais luz que outros, iluminando mais o exterior,
mas nunca fazendo com que os outros parecessem menos belos, pois todos eles
tinham a sua beleza própria.
Em alguns
casos, o topo da gruta era fêndido, e até mesmo esburacado. Através destes
buracos, o sol incide com força, e o brilho que surge para o exterior da gruta,
faz parecer que a gruta se está a fundir toda numa só cor.
Contudo, os
casos mais belos dão-se quando estas grutas, em noites de lua cheia em que o
céu está limpo, e as estrelas mostram o seu grande esplendor, iluminam a
escuridão da noite, cada uma com a sua luz irradiante e reconfortante, criando
um ambiente de alegria e de uma beleza extrema.
Uma das grutas
azuis, que tem largas fendas no seu tecto, tinha uma particularidade. Nela
corria um rio de água quente. Um, dos dois que existem nas montanhas de Ânli.
Este rio atravessa a rocha, como se de areia se tratasse, pois a rocha não lhe
faz oposição. O fumo que emana do rio quente, enche a gruta com uma sensação
agradável de um calor temperado e húmido. De dia, a luz que estes cristais
azuis espelham para o exterior é forte, mas o fumo, devido ao calor dos dias de
verão, não se vê. Mas à noite, com a escuridão, o fumo branco emerge das fendas
da gruta com suavidade. E durante as noites de lua cheia, o fumo larga a sua
tonalidade branca, e enche-se de um azul claro lindíssimo, que parece aclarar o
céu. Uma mão que se estende ao céu para o tocar.
Foi numa
destas noites, não de lua cheia, mas na sua transição para quarto minguante,
que nasceram dois rapazes. Kiloren e Philorem.
Filhos de
Curti, filho de Tellri, filho de Nia, filha de Dahamàr, estes eram os filhos da
quarta geração. Mas estes eram diferentes de tudo o que já tinha existido até
essa altura, eram gémeos.
O nascimento
era esperado com grande entusiasmo, pois Curti ainda não tinha sido pai, e ele
esperava muito por este acontecimento. Mas não esperava que lhe saíssem dois
rapazes. Contudo, um deles, o mais novo, tinha alguns problemas.
Kiloren nasceu
saudável, e com um aspecto bom. Mas Philorem não teve a mesma sorte, pois como
não sabiam que haviam duas crianças no ventre de Niamh, este passou algum tempo
esquecido no ventre de sua mãe, até vir a sair.
Este atraso,
quase causou a morte de Niamh e foi pesado em Philorem, pois este nasceu com
uma deficiência, que além de se ir manifestando lentamente, quanto mais ele
crescia, mais se fazia notar, fazendo com que ele fosse posto de parte pela
maior parte das crianças.
Ele tinha
dificuldade na fala, e parecia que ele mentalmente não envelhecia. Contudo, o
seu irmão nunca o largava, e tinha-o sempre junto de si. Nunca se separava
dele, protegendo-o contra todos que lhe quisessem, mesmo que por simples
brincadeira, magoá-lo, e também contra qualquer intempérie que lhes
sobreviesse, da qual ele não se conseguia defender.
A sua união
valeu-lhe alguns anos de alegria.
De todas as
grutas que existiam, muitas não emanavam luz. E essas nunca começavam a
libertar luz por acaso. Mas uma delas, sem razão aparente, começou a libertar
uma luz vermelha escura, luz esta que ninguém compreendia a sua origem, pois
não existiam, cristais de tal cor.
O seu tecto
não tinha fendas,como as grutas que expeliam a sua cor, mas mesmo assim, a luz
era brilhante, e saía lisongeiramente para o exterior da caverna. Parecia afastar de si qualquer tipo de
criaturas, pois todo o animal fugira de tal luz.
Philorem,
tendo mentalidade de criança, curiosidade de criança, mas corpo de adulto,
aventurou-se para essa caverna, sem que o seu irmão desse conta. Subiu, pé ante
pé, até que chegou à gruta. Só quando ele chegou à gruta, é que Kiloren reparou
na ausência de seu irmão, e correu para ele. Mas este já tinha entrado na
gruta, e uma força pareceu apoderar-se dele. Era como se mãos invisíveis o
puxassem, e remexessem no seu interior.
Kiloren chegou
à entrada da gruta, mas o que viu, estancou o seu sangue, congelou-lhe os
músculos, e firmou os seus pés. O corpo não lhe obedecia, e ele era um mero
espectador daquilo que via acontecer ao seu irmão.
Ele tinha
espasmos, e o seu corpo era como que violentamente atirado de um lado para o
outro, sem dó nem piedade. Por fim, foi atirado para o chão, criando na sua
testa uma pequena ferida, fazendo com que o sangue escorrece ligeiramente.
Kiloren
sentiu-se liberto dessas forças que o prendiam, e correu para o seu irmão.
Ajoelhou-se ao seu lado, e amparou a cabeça dele no seu colo. Com um dedo, ele
quis limpar o sangue que lhe escorria, fazendo o caminho oposto ao do sangue.
Mas o sangue, como que repelido pelo toque de Kiloren, subiu de novo para a
ferida, e esta fechou sozinha.
O espanto e o
medo eram amedrontadores na expressão de Kiloren. Philoren abriu os olhos, e
estes irradiavam a luz vermelha escura da gruta. Kiloren sentiu o seu irmão
erguer-se, e a atirá-lo para fora da gruta, como se se trata-se de um trapo
velho.
Triste, e sem
saber o que fazer, Kiloren olhou o seu irmão, mas este não era o mesmo. Virou
costas, e seguiu o seu caminho.
Paixão de Lobo
I Capítulo
- Das Grutas de Ânli,
à Floresta Âmmodh -
Enquanto
Kiloren descia das grutas de Ânli, compenetrado nos seus pensamentos e
lamúrias, com grande pesar no seu coração, surgiu nas suas costas a luz
vermelha escura irradiando do interior da gruta. Queimava e secava tudo o que
era vivo envolto na caverna, e iluminava o caminho percorrido por Kiloren. O
seu olhar cabisbaixo viu essa luz doentia aproximar-se, fazendo-o olhar para
trás. A imagem com que se deparou atemorizou-o, e fê-lo bradar aos céus,
chamando-se a si próprio de amaldiçoado.
A relva que
existia na entrada da gruta, o musgo que cobria parte da rocha da entrada da
gruta, bem com pequenas flores que existiam na relva, extinguiram-se com a luz,
como que sufocadas. Não eram mais que meros esqueletos de cinzas, do que em
tempos tinham sido.
Uma suave
brisa começou a soprar ligeiramente sobre as pequenas plantas inanimadas,
desfeitas em cinzas, e levou-as consigo.
No íntimo,
Kiloren sofria por Philorem, mas sabia que não podia ter feito nada. Dentro da
sua mente, sentia-se impotente e incapaz, e todo o seu corpo tremia por se
sentir assim. Tinha um olhar soturno, pois era grande a sua dor. Incapaz de
voltar atrás, e enfrentar o seu irmão gémeo, desceu as montanhas de Ânli, e
caminhou em direcção às terras do norte, como forma de redenção, que no seu
íntimo, sabia que não existia. Tudo à sua volta parecia sombrio, e em todas as
coisas ele via reprovação perante a sua atitude. Apesar dos dias e das noites
permanecerem bem iluminadas, aos seus olhos, pareciam uma escuridão imensa.
Sons e sombras assustavam-no constantemente, apesar de estar familiarizado com
todos eles.
Atravessou
as terras de Mantisot, bem como as terras de Bachese, e as de Maliu. Apesar do
seu sentido ser Norte, andou sem rumo nem direcção, e muitas vezes andou em
círculos, sem nunca se ter dado conta do seu movimento.
Andou durante
dez meses quase ininterruptamente, mal alimentado, desnutrido, magro e em
desfalecimento. Por último, entrou nas terras de Crent. Atravessou Crent pelas
suas florestas, Al, Sais e Âmmodh. Por todas elas, o seu corpo entesou de medo.
Tremia apesar da temperatura ser amena, cambaleava não apenas devido à fraqueza
corporal, e muitas vezes deitava-se por terra, na tentativa infrutífera de
conter o seu pavor. Contudo, foi em Âmmodh que o medo e o terror se apoderaram
dele. Numa réstea de energia que o seu corpo ainda tinha, correu desvairado
para sair da floresta, embrenhando-se ainda mais nela. A sua corrida era
desorientada e inconstante. Tentando-se desviar dos objectos que vinham sempre
demasiado rápidos na sua direcção, ou assim julgava pois tinha o discernimento
tolhido de fraqueza, os obstáculos levaram a melhor, pois sem se dar conta, o
braço duro de uma árvore o atingiu na testa, com toda a força da corrida, e o
atirou ao chão. Caiu duro pois a pancada fôra demasiado forte para se voltar a
erguer. Tentou olhar ao redor, mas a imagem calmamente se enevoava, e andava à
roda, até que tudo ficou negro, e ele ficou inconsciente.
Choveu-lhe
em cima, o sol aquecia-o, a noite arrefecia-o, mas nada o acordava. Só após
dois dias é que finalmente acordou. Mas o motivo pelo qual acordou não era
alegre. Era uma dor aguda e difícil de aguentar. Moribundo, tentou despertar da
sua inércia, mas estava lento e os seus olhos recusavam-se a aguentar a luz.
Uma sombra
cobriu-lhe o rosto do sol. Quando finalmente conseguiu tomar consciência do que
estava a acontecer, reparou que estava a ser rasgado por dois lobos. Apenas por
um segundo, longo e doloroso, todo o seu corpo ficou hirto, o que despertou a
atenção dos lobos. Olharam-no. Tinham um pelo cinzento escuro, mas os seus
olhos tinham uma cor doentia, e o seu olhar era frio e medonho. Os olhos tinham
uma cor vermelho vivo, como se o próprio sangue corresse em torno da íris. O
focinho de ambos escorria sangue, e as garras, que se encontravam em cima do
seu dorso, estavam também elas cheias de sangue e terra húmida. Todo aquele
sangue estava a assustá-lo profundamente, pois, apesar de ainda não ter visto
de onde vinha, não via nenhuma ferida em nenhum daqueles dois lobos. Olhou
então para o seu peito, junto das clavículas, muito próximo do pescoço, e foi
então que viu rasgões e dentadas, fundas o suficiente para se conseguir ver o
osso, outras, atingiam veias, fazendo o sangue saltar alguns centímetros no ar.
Num misto de pânico, fúria e raiva, agarrou num objecto afiado, e com toda a
força que encontrou no meio da sua insanidade, projectou um golpe num dos
lobos, abrindo-lhe o peito, deixando-o com as entranhas à mostra. O golpe que
lhe projectou, fez com que o lobo desse um encontro no outro lobo,
desequilibrando-o, e este segundo soltou um latido que quase parecia um choro.
Kiloren, louco e insane, agarrou no coração do lobo, bebeu o sangue que existia
dentro do coração, e comeu o coração. O sangue escorria-lhe sobre a face,
quente, mas o que lhe escorria pela garganta era áspero e ardente. A demência
inundou os seus olhos.
As
suas feridas esvaíam-no irremediavelmente em sangue. Aquele último fôlego de
forças desvaneceu, e lentamente, ele sucumbia no leito da morte. O lobo, após
ter presenciado tudo aquilo, e reparando que Kiloren tinha baixado a guarda,
recuou para fazer uma última investida. Pôs-se em posição de ataque, e
atirou-se incontrolado na sua direcção, de forma a desferir-lhe um golpe no
pescoço.
De uma forma
suave, mas rápida, surgiu um golpe no vento. Um leve assobiar acompanhava uma
flecha, que acertou no dorso do lobo, desviando-o do seu alvo. Rapidamente o
lobo posicionou-se para atacar novamente, e quando ia a saltar uma segunda seta
voou na sua direcção, acertando-lhe. A sangrar e enfraquecido, ele abandonou a
sua presa, fugindo através da densa floresta.
Kiloren
tinha o olhar turvo, e apenas conseguia ver um vulto. Uma sombra de alguém a
andar na sua direcção. Os seus olhos enegreceram, e ele caiu num sono tão
profundo, tão denso, como se algo se tivesse apoderado dele. Não do corpo, mas
do espírito.
*
* *
Três dias passaram. Os olhos
tremiam-lhe, a respiração acelerou ligeiramente, e quase instantaneamente, um
pano fresco e húmido pousou na sua testa, abrandando aquele acordar ofegante.
Com alguma dificuldade em abrir os olhos, começou por tentar tomar noção de
como estava. A temperatura era febril, contudo, sentia-se perfeitamente bem.
Calmamente abriu os olhos. Apesar da luz ser diminuta, esta feriu a sua vista,
mas ele continuou a tentar abri-los, até que finalmente estava a ver.
Deparou-se com uma elfa. Um ser lindo, quase angelical. Tinha o cabelo
vermelho, num tom escuro, os seus olhos eram de um lindo verde azeitona,
contudo, tinham também neles um tom de castanho dourado amável e meigo. A sua
pele era branca, e imaculada, quase perfeita. Ela olhava-o ternamente, e
profundamente preocupada. Os seus lábios subiram um pouco esboçando um sorriso,
que demonstrava alívio. Ela perguntou:
-
Como te sentes? - Nunca uma voz lhe tinha sido tão avassaladora. Era tão suave,
que aprecia cantada. Era como o canto dos rouxinóis.
-
Muito quente… - disse em surdina, e com a voz muito rouca. Após aquecer um
pouco a voz, prosseguiu - …mas sinto-me bem.
Espantada
e incrédula, ela julgou que ele não sentia as dores devido à febre. De uma
forma cuidadosa e suave, retirou o pano que lhe envolvia o peito, e verificou
que não havia um único arranhão, nem uma única cicatriz. Enquanto ela tirava o
pano, ele viu manchas de um vermelho seco, quase castanho, fazendo o seu
semblante ficou assustado, mas ao reparar que não tinha nada no peito, ficou
com uma expressão de alivio e de desconfiança, fitando-a descrente.
-
Parece-me que a poção é bastante eficaz - pensou ela alto.
-
Que poção? - questionou-a enquanto se sentava na pequena cama onde passara os
últimos três dias.
Ela
olhou-o pensativa, mostrando alguma apreensão às suas palavras, mas por fim
disse:
- Algo sobre o
qual tenho estado a trabalhar. Mas… - fitou-o incrédula, saltando com a vista entre
a sua face e o seu peito - …ainda não fomos devidamente apresentados.
Kiloren
sorriu-lhe e disse-lhe o seu nome. Ela deixou cair o cabelo sobre o ombro
direito, e disse de uma maneira doce e suave “Bellanna”. Ela usava um vestido
até aos pés, negro, delineado com roxo escuro. Nas suas pequenas e brancas
mãos, ela usava vários anéis de prata, todos eles bastante vistosos e
trabalhados. Ela olhou-o nos seus olhos negros, e afastou-se elegantemente,
desaparecendo para outra divisão. Sozinho no pequeno quarto, ele começou a
olhar ao seu redor. Todo o quarto era em madeira, preenchido apenas pela cama.
Numa das paredes havia uma janela. Ele olhou-a e viu a penumbra que havia no
exterior, e de tempos em tempos, reparava que caiam pequenas flores
cor-de-rosa.
Já nada o
distraía, levando o seu pensamento aos últimos dez meses. Foi então que o seu
estômago vociferou. Os dez meses de má alimentação e longa jornada, finalmente
falaram por si. Bellanna irrompeu pelo quarto com comida, o bastante para uma
refeição. Em poucos minutos ele devoroutudo, sem ficar satisfeito. Várias vezes
ele repetiu, até se sentir completamente cheio e satisfeito. Após isso,
abateu-se sobre ele um cansaço imenso, e ele caiu no sono.
Na manhã
seguinte, levantou-se da pequena cama, e apercebeu-se de que o seu corpo estava
a ficar ligeiramente peludo. Um pelo castanho e rasteiro, mas muito pequeno,
contudo ele já se tornava notório. Dirigindo-se à pequena cozinha, mais
arrastando-se que andando, ele notou que estava um dia chuvoso e ligeiramente
frio. Bellanna já preparava algo para comer, tendo em consideração o íncrivel
apetite de Kiloren. Simpática e meiga perguntou:
- Já te
levantaste?
- Passei muito
tempo deitado – repondeu-lhe olhando-a ao mesmo tempo que olhava a comida.
- Isso é
verdade. – sorriu-lhe alegremente – Sentes-te bem?
- Sinto-me
bem. Muito bem.
Ela fitou-o
com um olhar incrédulo, e ele prosseguiu:
- Quato tempo
estive eu a dormir?
- Três dias.
- Que
ferimentos tinha eu?
Os olhos dela arregalaram-se,
e por momentos o silêncio instalou-se. “Possivelmente ele não se lembra de ter
sido atacdo” pensou ela. Olhou-o com mais serenidade, e respondeu-lhe:
- Tinhas o
peito todo rasgado.
Os seus olhos
acharam incredubilidade nas palavras dela. Pois o seu peito nada tinha, a não
ser uma musculatura bem definida, e agora uma pequena pelugem acastanhada. Ao
ver nos olhos dele tal descrença, ela pegou nas roupas com que ela o tinha
trazido, e mostrou-lhas. Estavam completamente rasgadas e ensanguentadas. Após
irrefutável prova, ele acreditou na sua palavra. Olhou-a com um encanto tal,
que a fez sorrir de uma forma suave e misteriosa. Num tom meigo ela falou com
ele:
- De que te
lembras? – a sua voz era como o cantar dos riachos numa calma tarde de verão.
Olhou-a e
cerrou os olhos, levando a mão à testa. As imagens não acorriam à sua mente. Só
se lembrava de ter caído após meses de caminhada, e de acordar com ela a seu
lado. Dizendo-lhe isto, ela relatou-lhe o que tinha visto, o que não era muito.
Mas a imagem que ela lhe relatou dele assustou-o profundamente. A mera imagem
de ter a boca cheia de sangue de lobo, causada pelo facto de lhe ter comido o
coração era doentio. Contudo, isso tinha-se passado num momento de exaustão,
misturado com loucura, do qual não tinha não tinha recordações, tornando-a
assim numa imagem mais tolerável. Mas a sua mente corria energeticamente, pois
não tinha golpes nem cicatrizes, nos locias dos rasgões. Mas, apesar de achar
impossível, dava uma desculpa à ausência de feridas, graças à poção miraculosa
de Bellanna.
Três dias
passaram, prefazendo assim uma semana desde que Kiloren estava junto de
Bellanna. Pela primeira vez se tinha juntado a ela no alpendre, durante a
noite. Era a noite do completo quarto minguante. O céu encontrava-se limpo. Um
veludo negro, bordado com estrelas cintilantes, e uma lua baixa e laranja,
quase sem luz. Bellanna era estranhamente bela na noite. O seu ser parecia
brilhar quando a noite chegava. A maneira como o vento fazia o seu cabelo côr
de carmim esvoaçar. O seu vestido rodopiar ao seu sabor… era uma imagem
divinal. Encostada a um pequeno varão, viu-o aproximar-se, e esticou-lhe uma
mão, tão suave como a seda, como que chamando-o para junto dela. Contendo o seu
coração no peito, que pareceu querer saltar subitamente, ele aproximou-se dela,
dando-lhe a mão. Puxando-o para si, começou a mostrar-lhe tudo o que ela fazia
de noite. Aproveitava a pequena brisa fresca que passava numa noite tórrida
como aquela, o cé que se via ali, diferente do que Kilorne vira. Enquanto
aproveitava a brisa, o céu, e a companhia, Bellanna encostou a sua cabeça no
peito de Kiloren, o que o fez retrair. Ficou tenso, e com o coração a bater de
um modo irregular. Mas o perfume, a suavidade da sua pele, tudo nela o fez
relaxar. Por sua vez, Bellanna, após estar encostada no seu peito um momento,
tão curto para Kiloren, ela afastou-se, e fez um ar tão surpreso que causou
confusão em Kiloren. Olhou-o e disse:
- Desculpa a
pergunta, mas sentes-te bem?
- Melhor que
nunca! – respondeu-lhe em trejeito, e envergonhado.
- Estás
quente… - parou por um instante, percorrendo-o com os olhos – mais que o
normal.
- Muito mais?
– Apesar de se sentir quente, não se sentia muito mais que o normal.
- Muito
mesmo. Mas se te sentes normal e bem, não
deve ser nada de preocupante.
Encostou-se
novamente no seu peito, e deixou o calor que emanava do seu dele temperar a sua
temperatura corporal. Ele olhava-o, sem saber ao certo o que se passava no seu
íntimo. Começava a sentir algo estranho. O seu coração estava cada vez mais
irregular, e a bater cada vez com mais força. Mas apesra de estranho, sentia-se
irrefutavelmente bem. Nunca el se imaginara em tão boa companhia, numa noite
tão bela e agradável com aquela.Mas uma dor extrema arrebatou-o. Uma fortíssima
dor de cabeça fê-lo recuar dois passos, afastando-se de Bellanna, que o olhou
intrigada, e reparou no semblante carregado que inundava a sua face. Dirigiu-se
a ele com algum desespero, e ajudando-o a voltar para o quarto dele, tratou de
cuidar dele, levando-lhe panos húmidos para lhe refrescar a cabeça.
Esta condição
durou cerca de dois dias. Bellanna tentou todo o tipo de poções que lhe
poderiam aliviar, mas nenhuma delas ajudou. Até tentou alguns feitiços que lhe
tinham sido deixados pela sua tutora, mas nem tal ajudou. Apenas o tempo o fez
melhorar, e passados os dois dias de constante dor e tormento, Kiloren teve
descanso. Abriu os olhos e viu Bellanna deitada a seu lado, completamente
estoirada de ter passado os últimos dois dias acordada a cuidar dele. Ela tinha
a face de um anjo enquanto dormia. Tão doce e inocente, ela se assemelhava a um
recém nascido, no seu sono mais profundo. Tinha uma respiração suave, quase
inaudível, e apenas dava para perceber que estava viva devido ao movimento
corporal que a respiração lhe causava. Dividido, sem saber se a acordaria ou se
a deixava a dormir, supondo que devia de necessitar de descanso, saiu
silênciosamente da cama, e cobriu-a com uma manta que estava no fundo da cama.
Olhou-a uma vez mais, e por fim, saiu do quarto.
Dirigiu-se à
cozinha, onde se alimentou muito, devido a não comer já à dois dias, mas também
derivádo à sua fome descomunal. Finalmente saiu, e deixou-se ficar no alpendre
algum tempo, a sentir o chiro do ar quente. Enquanto sentia este cheiro, um
outro interpelou-o. Cheirava-lhe a animal de caça. Estranhado-se com tal
precisão de cheiros, hesitou no alpendre, não acreditando que estivesse com um
olfacto tão apurado. Surgiu-lhe então na mente a possibilidade de ser obra de
Bellanna e de suas poções. Agarrou então no arco e nas flechas, e foi caçar.
Entrou hesitante na floresta circundante, caminhando calmamente na direcção do
cheiro. Viu um movimento próximo, e deu um paço em frente, fazendo um ligeiro
ruído. O animal pareceu hesitar, até que começou a correr. Kiloren correu para
o alcançar, mas era impossível. Conseguindo ver onde estava, apontou e lançou a
flecha, mas o animal desviou-se instintivamente da rota que tomara
inicialmente. Num acto de puro instinto, Kiloren fechou os olhos, e concentrando-se
apenas no olfacto e na audição, descortinou a posição do animal, abriu entãol
os olhos segundos antes de lançar a flecha. Abriu a mão e relaxou-a, enquanto a
flecha se dirigia velozmente ao animal. A sua presa tombou. A sua face
encheu-se de júbilo, pois o animal encontrava-se a uma distância enorme. Correu
até ao animal, e só então reparou que era um javali. Levou-o então para casa,
para o arranjar para o jantar.
Algumas horas
mais tarde, já a noite tinha chegado, decidiu-se a ir ver Bellanna. Ao entrar
no quarto, abriu calmamentea porta, e sentiu um cheiro intenso vir do interior
do quarto. Era o cheiro de bellanna. Mas o perfume era agora tão mais intenso,
tão perceptível, tão preenchedor. Era como o cheiro da terra molhada, e como o
jasmim. Tão doce e quente, mas tão refrescante ao mesmo tempo, que quase o
atorduou. Mesmo assim, ele avançou na direcção dela, e beijando-lhe suavemente
a testa, tentou acordá-la. Mesmo a dormir, ela sorriu de uma forma suave. Só
após alguns instantes é que ela acordou, e viu-o sentado na cama a olhá-la. Ela
olhou através da janela, e viu que era noite. Levantou-se de rompante,
dirigindo-se rapidamente à cozinha, para fazer comida, quando reparou que tudo
estava pronto. Kiloren seguiu atrás del com um largo sorriso nos lábios, e
disse-lhe que já tinha preparado tudo para que ela pudesse ter algum descanso.
Ela olhou-o com um ar incrédulo, mas rapidamente a sua incredulidade foi
trocada por embaraço e um pouco de vergonha, fazendo-a corar. Foi então que,
enquanto comiam, Bellanna perguntou:
- Sentes-te
melhor?
- Muito
melhor. Não sinto dor alguma. Usaste alguma poção?
- Várias! –
Respondeu retraída – mas nenhuma pareceu funcionar.
Olhou-a, e
principiando a rir-se disse:
- As poções
podem não ter tido qualquer efeito sobre as dores de cabeça, mas tiveram
efeitos ainda melhores.
A surpresa
encheu as suaves feições de Bellanna. Ele continuou:
- Enquanto
dormias, fui caçar. E tudo me era nítido. Os sons, os cheiros, os vultos e as
imagens escondidas.
Bellanna fez
uma rápida intospecção sobre todas as poções que lhe tinha dado a beber, e
todos os feitiços que lhe tinha feito,mas não se recordava de nenhum que
tivesse esse efeito. Quando terminou de comer, levantou-se, e pegou num grande
livro, onde tinha todos os efeitps das várias poções e feitiços, mas após uma
rápida análise, verificou que nenhum causava tal efeito. Kiloren tomou então
consciência de que era ele que estava a ficar diferente, sem o auxílio de nada.
Inicialmente o seu semblante ficou profundamente carregado, assustado com tudo
o que se parecia com uma estranha transformação. Mas Bellanna fê-lo acalmar.
Encostando-se no seu peito, puxou-o até ao alpendre para apanhar um pouco de
ar. Começava então a surgir entre eles um amor estranho. Tão forte e contínuou,
que nada o podia arrebatar.
Na manhã
seguinte, Kiloren levantou-se e decidiu-se a ir dar uma volta. O céu estava
incoberto, e o tempo húmido e fresco. O cheiro a terra molhada era forte, e o
orvalho era em grande quantidade.
À volta da
casa, nada mais havia que algumas flores, relva e algum musgo, e na parte de
trás da casa uma pequena lápide de mármore trabalhada, cravada na terra. Era de
um mármore verde, e nele havia musgo. Junto da lápide, havia uma árvore, pouco
mais alta que um elfo. Os seus braços era arqueados, e a sua folhagem pingava
em direcção do chão. Era de um verde esbelto e acalmante, e a sua folhagem
criava um ambiente refrescante.
A casa por fora, era um cojunto de madeiras,
com algumas janelas, e um telhado ligeiramente inclinado. Verdadeiramente
pitoresca.
Seguidamente
da clareira onde se encontrava a casa, havia a floresta de Âmmodh. Dela vinham
todo o tipo de cheiros e barulhos. Embrenhando-se nela, Kiloren começou a sua
caminhada. Levado pelos cheiros que nunca tinha sentido, começou a relacionar
os cheiros às coisas. Animais e plantas. Começou a relaccionar os mais pequenos
ruídos aos seus donos. Desde cantos a passos quase inaudíveis. Mas foi um
cheiro intenso e putrefacto que o atraiu, e guiou a sua caminhada. Não era
longe dali, mas a caminhada era algo complicada.
Foi andando
sempre distraindo-se ligeiramente com outros cheiros, e barulhos, mas a sua
principal concentração ia no sentido daquele cheiro. Finalmente chegado lá,
denotou de onde derivava o cheiro.
As árvores
estavam cheias de sangue, e o chão igualmente. A terra estava misturada com
sangue. E ainda ali estava o lobo cinzento escuro, esventrado e sem coração. O
cheiro putrefacto era proveniente dali. Era intenso e horrível. Impossível de
se aguentar ali muito tempo.
Kiloren
durante algum tempo esteve apenas a observar todo o cenário que se deparava
ali, até que finalmente se dirigiu ao lobo. Olhou-o incrédulo. Inspecionou-o e
reparou que junto do pescoço estava a marca de uma mão. Era como se o pêlo do
lobo tivesse sido queimado por essa mão.
Deixou-se
ficar por ali mais uns instantes, e decidiu-se então a vir-se embora.
De volta a
casa, encontrou Bellanna já levantada, extremamente bela de volta do seu arco.
A calma era vizível no seu semblante. Estava alegre por o voltar a ver, e
curiosa por saber onde ele tinha estado.
O seu ser
encheu-se de paz e de calma quando ela lhe sorriu. Era pacifícador. O olhar
terno que ela lhe dirigia o comovia profundamente. Chegou-se junto dela, e
beijou-lhe carinhosamente a face. As suas pequenas e rosadas bochechas ficaram
encarnadas de embaraço, e o seu sorriço tornou-se num misto de vergonha e
alegria, mas ela sentia-se bem e feliz.
Kiloren
perguntou-lhe sobre os lobos que o tinham atacado, mas ela não sabia nada
deles. Eram apenas uns lobos ferozes e esfomeados, mas nada mais ela sabia
sobre eles. Nem tinha reparado na marca que o lobo, que ainda estava lá, tinha
junto do dorso. Por tal, essa conversa durou muito pouco tempo.
O dia passava
alegre, tal como eles se começaram a sentir juntos um do outro. O carinho que
tinham um pelo outro aumentava gradualmente a cada dia que passava, e começava
a ser mesmo muito. Começavam a olhar-se de geitos estranhos, e a presença de
ambos era mutualmente agradável.
Os dias e as
noites passaram, até que se completou a segunda semana. A lua nova impunha-se
no céu como um gigante majestoso. Era enorme, e a sua luz diminuta, o que
tornava a noite ainda mais escura. Desde a melhora de Kiloren, que as noites
têm sido passadas no alpendre, a apreciar a noite em todo o seu esplendor.
Desde a lua às estrelas, e dos cheiros ao barulhos, tudo era um motivo para uma
perlongada conversa, alegra e regozijante. A conversa entre ambos era bastante
entretida, mas a Kiloren começaram a dar umas dores ligeiras nos músculos e nos
dentes. De início, eram apenas dores ligeiras. Mas começaram a aumentar a sua
intensidade, até que Kiloren decidiu-se a ir descansar o seu corpo.
Bellanna,
viu-o ir-se embora, e seguiu-o até ao quarto, onde o ajudou a deitar-se até ele
adormecer.
Nesta noite,
Kiloren teve um sonho. Apenas via neblina, num misto de uma luz azul.Caminhou
durante bastante tempo, mas a neblina não desaparecia. Mas no meio da neblina
apareceu uma casa. Toda ela em madeira. Com um bonito alpendre, e nela morava
uma anã. A anã olhou-o, e dirigiu-se a ele. Ela dava-lhe pela cintura, mas o
seu olhar era penetrante. Deu uma volta por ele e falou numa lingua que ele não
entendeu. Depois olhou para ele, e disse:
- Vai-te
embora. Não te aproximes da Sanirah. Salva-a, e vai-te embora.
- Como? Quem é
a Sanirah? – a sua voz era um murmúrio lançado ao vento.
- Vai-te
embora. Salva-a. Salva a Sanirah. De ti.
E a casa,
junto com a anã, começaram a afastar-se dele. Ele tentou correr para alcançá-las,
mas não conseguiu.
Na manhã
seguinte, Kiloren levantou-se calmamente, pois sentia-se algo tonto. Dirigiu-se
junto de Bellanna, que o olhava preocupada. Ele sentou-se, e ela começou a
falar-lhe:
- Como te
sentes hoje?
- Sinto-me
tonto. Parece que o ar pesa dentro de mim.
- E dormir…
dormiste bem? – a sua voz era de preocupação.
- Mais ou
menos. Tive um sonho estranho. – a sua voz parecia deixar um mistério no seu
rasto.
- Pois me
pareceu. Passas-te a noite inteira a dizer que não. Julguei até que tivesses com
fébre e a delirar. Mas eu não sei como medir a tua tenperatura. – o seu ar era
de preocupação, mas continuou – mas conta-me como foi esse teu sonho.
Ele pegou uma
peça de fruta, e antes de lhe afincar os dentes ele disse:
- Algo de
estranho. Vi uma casa, parecida com esta, mas nela vivia uma anâ cujo nome não
sei, mas ela disse-me para me ir embora.
- Para te ires
embora?
- Sim – fez
uma pausa e continuou – para salvar uma tal de Sanirah. Crei que fosse esse o
nome.
A face de
Bellanna empalideceu. Os seus olhos encheram-se de um verde seco, e a sua voz
pareceu desaparecer. Pareceu entrar num estado de transe. Kiloren levantou-se
assustado, dirigiu-se a ela e tentou acordá-la daquele estranho sono. Quanto
mais tempo ela ficava naquele estado, mais sumidos os seus olhos ficavam, até
que ficaram completamente sem côr. Kiloren quase entrou em pânico, mas
finalmente ela voltou a si.
Ela estava
calma e tranquila, contraria de Kiloren, que estava aflito e preocupado. Ele
encheu-a de perguntas, mas ela respondeu calma e pausadamente:
- Esta é a
minha história.
Eu era filha
das campos e das florestas. Das àrvores e dos pássaros. Filha de Demüss, Filho
de Riisa, Filha de Linfinel. Da linhagem de Linfinel. Da família de Domlun. A
história dos irmãos dos meus avós é triste, bem como a do próprio Linfinel. Mas
a de Riisa é alegre. A única filha de Linfinel que se casou, e que lhe deu
netos, e os netos lhe deram bisnetos. E eu era uma desses bisnetos. Levava os
meus dias a passear pelas florestas, a aprender sobre as árvores, e sobre os
animais das florestas. Mas eu ia além do conhecimento da minha avó. Eu
conseguia aprender mais rapidamente e com maior destreza. Era apenas uma
pequena criança, mas já não havia nada nos meus pais, ou nos meus avós para me
ensinarem. Comecei então a entrar mais fundo nas florestas, e os meus passeios
começºaram a ser mais longos e demorados. – parou por um breve momento, e
retomou – Muitas vezes eu me perdi, mas acabei sempre por encontrar caminho de
volta. Mas certa vez, enveredei pela floresta mais sombria de todas. A floresta
de Âmmodh. Tinha apenas doze anos quando o fiz. Saí cedo de casa, pouco depois
do sol ter nascido, e caminhei até não voltar a haver sol. Tentei regressar,
mas não conseguia encontrar o caminho. Decidi então passar a noite na floresta,
e regressar de dia. Mas esta floresta engana. Faz o dia ser noite e a noite ser
dia. E sem que eu desse conta, já se tinham passado quatro luas sem que eu
conseguisse voltar para casa. Foi então que me encontrei esta casa. De início
pareceu-me estranho ela estar aqui assim, como que abandonada, mas mesmo assim
entrei. Apesar dos meus apenas doze anos de idade, eu já era maior que a dona
da casa. Era uma anã. – os olhos rodaram para cima, e ela suspirou amargamente
– Vímia era o seu nome.
- Era a anã do
meu sonho? – apesar de lhe paracer estranho, ele fez a pergunta.
- Já lá chego.
Eu pedi-lhe
que me indicasse o caminho de volta para casa, uma vez que eu não conseguia.
Foi então que reparei que ela era cega. Ela enclinou as suas pequenas e rechonchudas
mãos, e começou a apalpar-me a face. Ela disse “Sanirah”. – os olhos de Kiloren
esbugalharam-se, mas ela prosseguiu – Esse era o meu nome, quando morava com os
meus pais. E ela tinha-o adivinhado. Ela disse que me levava de volta para
casa. E assim foi. Ela devolveu-me aos meus pais. Mas sempre que eu podia vinha
cá ter com ela. Assim se passaram três anos da minha vida. Mas uma certa vez,
após ter vesitado a anã, eu voltei para minha casa, mas não encontrei nada.
Apenas nada. As casas não estavam lá, a minha família não estava lá, nada tinha
ficado para trás. Eu não sei se partiram sem mim, apenas sei que após esse dia,
eu vivi com Vímia. Foi então que ela me mostrou toda a casa no seu esplendor.
Ensinou-me a arte de criar poções e fazer feitiços. Contudo, foram poucos os
poderes que ela me ensinou. Quando eu fiz dezasseis, após viver aqui um ano,
Vímia morreu. Eu preparei-lhe o enterro tal como ela queria. A lápide atrás da
casa, é a dela. Contudo, após o enterro, cresceu junto dela aquela árvore.
Aquele chorão. Cresceu todo o seu esplendor em apenas uma primavera. Como se a
vida de Vímia tivessse feito a árvore crescer. Desde então que aqui vivo
sozinha. Mas nunca ela me apareceu num sonho. – a sua face estava repleta de
tristeza – Finalmente, tu apareceste – a sua face encheu-se de alegria –
trazendo contigo tudo o que meu coração pedira.
- Mas então,
essa Vímia, porque me mandou ela para longe de ti?
- Eu não sei.
O silêncio
instalou-se entre eles. Mas o conforto transmitido por entre os braços de ambos
o suficiente para começarem a amar-se muito. Os seus seres começavam-se a ligar
muito profundamente. Mas, conforme o tempo passava, Kiloren sentia-se mais
estranho. As suas unhas começaram a tomar uma forma diferente. Eram mais fortes
e pontiagudas. Os seus dentes estavam maiores e mais afiados. E a sua força,
era incomedida. Era capaz de arrancar uma árvore e a sua raíz do chão. Mas com
Bellanna a seu lado, ele sentia-se bem.
As dores eram
já meras dormências, e Bellanna já se sentia descontraída para não o vigiar à
noite. Contudo, ela levantou-se a meio da noite para o ir espreitar. Ficou
bastante tempo junto da porta a olhar o seu corpo imaculado e semi despido a
respirar fortemente. O seu peito inchava com o ar que lhe entrava. Era
musculado e bem definido, mas sobre a sua pele, o pêlo era cada vez mais
vizível. Ela olhou-o então de perto, e reparou que era um pêlo macio e forte,
diferente dos pelos corporais de um humano normal. Kiloren despertou com
Bellanna a olhá-lo questionadoramente. Os seus olhares cruzaram-se. Bellanna
começou a respirar fortemente, e o seu coração começou a bater velozmente. Os
seus cabelos caíam-lhe junto da face, tocando suavemente o peito dele. A sua
mão esquerda, apoiava-a junto da cama, enquanto ela ajeitava o cabelo com a
outra mão. Kiloren olhou-a nos seus suaves e elegantes movimentos, e começou a
sentir-se incontrolável. Deitado, ele agarrou o braço que a apoiava na cama, e
puxou a sua face com a outra mão na sua direcção. Os seus lábios aproximavam-se
calmamente um do outro. Os seus olhos verdes envergavam desejo como que se
pingasse deles. Um beijo surgiu de uma forma quase inocente. Os seus lábios
uniram-se, e neles houve uma união de amor incontrolável. Os seus corpos
tremeram com a intensidade do beijo, que ia aumentando com o tempo.
Os seus lábio
afastaram-se. A voz de Bellanna era um murmúrio ausente no vento, enquanto que
as suas forças eram varas quebradiças. Ela deixou-se cair no peito dele,
envergando um sorriso alegre e repleto de magia. Ele poisou o seu braço sobre
as costas dela, e assim adormeceram.
Bellanna
acordou primeiro que ele. Olhou-o, e de seguida olhou para si mesma, e sentiu
vergonha. Mas no seu íntimo, era a alegria que prevalecia. Finalmente ela
sentia-se feliz. Esta alegria permaneceu e encheu-a de amor.
Kiloren
acordou mais tarde, apenas com o cheiro de Bellanna no seu corpo. Era suave e
doce. Era quente. Levantou-se de um pulo, e dirigiu-se na direcção dela. Ela
correu na sua direcção, e encostou a cabeça no peito dele. Ele puxou-a contra o
peito, enquanto lhe passava a mão pelos longos cabelos vermelhos. Confortável e
amada, ela sentia-se feliz. A sua mão subiu na direcção no peito dele, e
suavemente, acariciava-lhe aquele estranho mas macio pêlo. Com uma mão apenas,
ele pegou-lhe ao colo, e levou-a para fora da casa. O espanto era visível na
face dela.
Chegados ao
exterior, pousou-a, e ela disse-lhe:
- Vejo que
força não te falta. – sorriu-lhe alegremente.
- Por que
dizes isso? – questionou-a divertido.
- Nem à três
semanas atrás estavas num estado deplurável, e agora andas a fazer caminhadas
na floresta, à caça, a ajudar-me com a casa, e a pegar-me ao colo.
- Não é nada
demais.
- Mas
pegaste-me apenas com uma mão, não foi?
Parou por um
instante e pensou. Kiloren nem tinha tido muita consciência do que tinha feito.
Foi um pouco a custo que lhe respondeu que sim. Decidiu-se então a ir fazer um
esforço qualquer, para testar a sua força. Para saber se estava toda de volta.
Pegou num
pequeno machado, cuja cabeça tinha o tamanho da palma de de uma mão, e foi
partir lenha. Começou por pequenos troncos. Mas esses desfaziam-se mal o
machado os atingia. Então foi aumentando o tamanho do tronco. Mas nenhum deles
se opôs à sua machadada. Dirigiu-se então a uma árvore, que envergava uma
áltura superior à dele cerca de cinco vezes. Marcou mentalmente um sítio onde
começar a cortar, e puxou o machado atrás. Ao embater com o machado na árvore,
a árvore ficou com a cabeça do machado lá presa, enquanto que o cabo do machado
estilhaçou-se com a força do embate. Kiloren ficou pasmo com o sucedido. Um
estalo surgiu do interior da árvore. O sítio onde tinha embatido o machado
abriu uma brecha, e esta rasgou o troco de um lado ao outro, horizontalmente.
Não demorou muito até que a árvore tombasse violentamente no chão, libertanto a
cabeça do machado do seu interior. Bellanna ficou estupefacta com o que tinha
acabado de acontecer. O seu queixo não queria subir. Olhava Kiloren, e a
árvore. Repetiu este movimento bastantes vezes, até que foi ter com ele e, após
algumas tentativas disse:
- Como é que
isto aconteceu?
- Eu não sei.
– Kiloren parecia assustado. Ele tremia no seu íntimo – Nunca tal me tinha
acontecido.
- É
impressinonate!
Kiloren
olhou-se e viu que realmente, nem o seu físico era o mesmo. Esta mais desnevolvido,
mais definido. Era estranho como ele tinha ficado assim, mas apesar disso,
agradava-lhe.
Os dias
passaram, e veio o dia em que a lua estava em quarto crescente. O desejo em
ambos era ardente. A lua brilhava grandemente, e a sua beleza era imensa.
Bellanna envergava um simples vestido negro e bordô, muito suave, e bastante
apelativo. Kiloren olhou-a com um enorme desejo, mas o seu olhar era também
terno e carinhoso. O seu amor por ela era imenso, incapaz de a magoar
independentemente da situação. Ela olhava-o, enquanto ele envergava o tronco
nu, e sentia-se tentada por ele. Ele tinha um aspecto protector que a deixava
descansada quando estava junto dele. Delicadamente, ele começou a despi-la. O
olhar dela era meigo e nervoso. Mas isso não a parou. Ele olhou-a completamente
despida, e o seu corpo era belo. Todos os pequenos pormenores que tinha
embelezavam-no. A sua pele que era sedosa e perfeita, os pequenos sinais que
pareciam estrelas, uma pequena marca de nascença, semelhante à lua em quarto minguante,
junto do umbigo, tudo tornava o seu corpo ainda mais esbelto. Os seus seios
firmes e redondos, eram como pêssegos delicados numa árvore imaculada. Nesta
noite, os seus corpos uniram-se como um só, e os seus espíritos unificaram-se,
deixando a marca de um no outro.
Ao amanhecer,
Kiloren levantou-se para descobrir algo. O seu corpo havera crescido em altura
e largura. Quase não passava por entre a ombreira. Bellanna olhou-o da cama,
ainda despida, envergando uma beleza incalculável, espantada com o seu tamanho.
Devia de ter crescido uns dois palmos em altura e mais de um ombro em largura. Ela
levantou-se, vestindo o seu pequeno vestido preto e bordô, e seguiu-o,
agarrando-se às costas dele. Ele olhou-a, e ela soltou um grito de espanto com
misto de terror. As suas feições estavam a mudar. Ele saiu da casa, e à luz do
sol o seu pêlo brilhava como àgua cristalina. O seu tom castanho avermelhado
era lindo. Mas era estranho. Os quatro dias que se seguiram foram estranhos e
difíceis. Todo o seu corpo mudava. Parecia que nada queria ficar como dantes. Ela
olhava-o preocupada, mas o seu amor por ele era cada vez maior. A cada dia que
passava ela o amava mais, e ele também. Ela era como um lufada de ar fresco que
tinha entrado na sua vida. Um bem tão precioso, que nada poderia magoar. Mas
quanto mais tempo passava maior era a sua tranformação. Até que se completou o
ciclo lunar.
A lua enchia o
céu de luz. Estava cheia, e o seu tom amarelo dava vida à noite. Kiloren
olhou-a, completamente tranfosrmado, e uivou. Um acto impensado do qual ele nem
se tinha dado conta. Bellanna olhou-o e estranhou aquele comportamento. Olhou
curiosa e perguntou-lhe?
- É habito
teu?
- O que é que
é habito meu? – a sua voz tinha um timbre diferente.
- Uivares à
lua, como os lobos fazem. – ela conteve uma pequena gargalhada.
- Eu não
uivei. – a sua voz suava cada vez mais diferente. Parecia misturada com um
latido.
- Uivaste sim
– disse divertida – eu estava mesmo a teu lado e ouvi.
- Não uivei
não – ele começava a descontrolar-se. Dos seus dedos cresceram longas garras, e
os seus dentes brilhavam afiados e mortíferos. De dentro da sua boca, surgia um
pequenos rugido que o acompanhava enquanto falava. Bellanna começou a sentir-se
assustada, recuando calmamente. Kiloren estava cada vez mais descontrolado.
Olhou novamente a lua e novamente uivou. Bellanna cometeu então o seu maior
erro dizendo:
- Estás a ver
como tenho razão? Voltaste a uivar.
Kiloren estava
completamente fora de si. Já não era Kiloren, mas sim uma besta que havia
emergido de dentro do seu ser. Uma besta que se tinha vindo a fazer, e a
crescer calmamente no seu interior, até que se soltara. Disposta a fazer muitos
estragos. Ele olhou-a extremamente raivoso de fúria, e rugiu enquanto gritava:
- NÃO. EU NÃO
UIVEI.
Os olhos de
Bellanna encheram-se de lágrimas de pesar. O seu amado estava diferente. Os
seus cabelos vermelhos voavam com a forte brisa que começava a atormentar
aquela noite, enquanto que o seu choro começava a ser audível. Algo tomou o
espírito de Kiloren que se elevou acima do da besta, e aguentou toda a fúria
que crescia dentro dele. Calmamente, para não perder o controle, ele dirigiu-se
na direcção dela, e a agarrou com muita delicadeza, elevando-a do chão de forma
a tê-la à sua altura. Olhou nos seus verdes olhos, húmidos e vermelhos do
choro, e o seu coração doeu. Abraçou-a contra si, e olhando-a na face,
beijou-lhe os lábios, beijo que ela respondeu, sentindo que aquele era o seu
Kiloren. Enrolou os seu pequenos braços à volta do pescoço de Kiloren, e chorou
por mais um pouco, enquanto ele controlava a besta que gritava por liberdade.
Poisou-a suavemente, e disse-lhe:
- Desculpa.
Vímia tinha razão. Eu sou um perigo para ti.
Beijando-a
novamente, um beijo longo e amargo, correu o mais depressa que pôde para longe
dali, antes que a besta dentro dele voltasse a erguer-se e pudesse pôr em
perigo a vida da sua amada.
Bellanna
olhava demoradamente para a zona da floresta por onde ele tinha entrado, na
esperança de o voltar a ver sair da floresta, e a tomasse nos braços. Ela olhou
os céus e apenas havia neles uma enorme lua cheia, amarela e cheia de mistério.
As lágrimas corriam como nascentes, mas não havia som com as lágrimas. O choro
era mudo. As suas feições não se alteravam. Envolvendo os braços na zona do
peito, abraçando-se, deixou-se ficar na noite que tendia a ficar cada vez mais
fria. O seu coração parecia quebrado como uma simples camada de gelo dum lago
nas primeiras épocas de neve. O peso que atormentava o seu peito era demasiado
grande. Vagarosamente, arrastou-se pé ante pé, até à lápide de Vímia, e junto
dela gritou ajoelhada:
- Porquê?
Porquê? Porquê? – a sua voz ia sumindo conforme gritava. Parou por uns
instantes e continuou a falar para a lápide – Agora que estava bem e feliz,
tiraste-me a única coisa que me fez feliz desde que entrei nesta floresta
amaldiçoada? Que mais me queres tirar? Não bastou tudo o que me tinhas tirado?
Aproximou-se
então do chorão, que libertou os seus ramos da inércia, e a abraçou em
aconchego criando-lhe uma suave cama de folhagens. O vento já não lhe batia. A
sua voz era já um triste murmúrio perdido no tempo que dizia “porquê?...”
*
* *
II Capítulo
- O domador de Lobos
-
Kiloren
corria frenéticamente pela floresta de Âmmodh, até que se tranformou
completamente. O seu corpo explodiu em tamanho e em forma. O seu corpo era o de
um lobo. Uma explosão de massa muscular e pêlo irrompeu no seu corpo. O pêlo
cresceu vários centímetros, e os seus músculos além de se terem modificado,
cresceram ainda mais. Definitivamente, ele era um lobo. Mas não um lobo
qualquer. Era muito maior que um lobo normal, mais forte, mais ágil, muito mais
perigoso. Kiloren não mandava mais no seu corpo. O seu corpo era morada para um
outro ser mais forte, e muito mais perigoso. Kiloren deixara de ter poder sobre
o seu corpo. Um mero espectador de uma estranha realidade.
Era-lhe
difícil suportar tal realidade. Tão surreal e tão estranha. “Como era
possível?”, a pergunta que o atormentava constantemente.
Olhou através
dos olhos que já não eram dele, escutou através dos ouvidos que não eram dele.
Tudo lhe estava mais aguçado, mas tudo lhe era demasiado estranho. Impossível.
Mas era verdade, e não sabia ele quando voltaria à sua forma natural, se é que
algum dia isso viesse a acontecer.
Ouviu os sons
feitos pelo seu corpo. Não falava. Só latia, e uivava. Contudo, era um som
estrondoso. Ouvia-se a uma enorme distância. Os seus passos eram pesados.
Kiloren ficou então curioso com o tamanho das pegadas. Repentinamente, olhou
para trás. Kiloren apercebeu-se então que estava novamente em controlo do seu
corpo, mas durou pouquíssimo tempo. Uma força que o parecia ter puxado para
trás retirou-o do comando do seu corpo. E assim permaneceu durante peaticamente
um mês. Os primeiros dias que assim permaneceu foram turtuosos. O lobo não
parava de andar. Saiu da floresta e vagueou pelas terras sem se alimentar.
Bebendo apenas àgua. Mas os dias que se seguiram foram horrosos.
O lobo
aproximou-se de uma pequena aldeia. Inicialmente, esperava as pessoas entrarem
na floresta, e atacava-as. A primeira que ele atacou, era um homem. Alto e
forte. Mas o homem não teve qualquer hipótesse contra aquela besta. Silenciosa,
aproximou-se do homem, e atacando-o por atrás, atirou-o por terra. Desfê-lo em
pedaços. Não sobrou nem um único pedaço. Só uma enorme poça de sangue. Kiloren
sentia-se enjoado e enojado pelo que tinha acontecido. Pas a seguir ainda foi
pior. Não só atacara homens como mulheres e crianças. Sentia-se cada vez pior,
mas não conseguia, por um momento que fosse, tomar as rédeas do seu corpo. Por
ora, os habitentes daquela pequena aldeia, que tinham perdido cerca de dez
habitantes em apenas dois dias, decidiram-se a proibir toda a gente de entrar
na floresta. Isso fez com que a besta ficasse sem comer durante dois dias. Quando
não aguentava mais a fome, começou a atacar a aldeia de noite. Decepou a vida a
quase todos os habitantes. Os poucos que sobreviveram, tentaram fugir, mas
apenas dois conseguiram fugir. Cada um para seu lado. Mas mesmo assim, foram
feridos, sem gravidade. Kiloren estava completamente desolado. Prisioneiro no
seu próprio corpo, incapaz de voltar a fazer uso dele, tomado por uma criatura
horrível e doentia.
A notícia
espalhou-se. Os dois que haveram escapado passaram a palavra sobre um lobo
gigante que atacava as pessoas quando menos esperavam, e que se alimentava
delas. Até aquela altura, os lobos raramente tinham atacado pessoas. E os que
atacavam não eram uma grande ameaça, rapidamente eram afastados ou mortos. Mas
isso não se passava com aquele lobo.
A sua
ferocidade aterrorizou durante bastante tempo mais algumas aldeias. Kiloren
continuava a não conseguir suportar aquelas imagens de morte e desmembramentos.
Ele não compreendia o porquê do lobo só se alimentar de carne humana. Passara
dias sem se alimentar, e não recorreu uma única vez a outro animal. Só a carne
humana e o seu sangue o saciavam.
Passaram-se
assim três semanas. A besta que controlava o corpo de Kiloren sentia-se cansada,
mas não o suficiente para voltar a adormecer. Durante todo este tempo, o lobo
tinha dormido, mas quem o controlava não. Contrariamente a Kiloren.
Certo dia,
após as três semanas, uma voz surgiu a Kiloren. Ele olhou através dos seus
olhos, mas não via nenhum homem. E decerto que esse homem não estava próximo de
si. Caso contrário já não existiria. A voz era na sua mente. E não era a voz da
besta, pois essa não sabia falar. Era de outra pessoa. Numa língua estranha,
ele começou a ouvir falar. Parecia querer comunicar com a besta, mas esta
parecia resmungar, e não fazer caso do que lhe estava a ser dito. Foi então que
o Kiloren disse:
- Quem está
aí? – o silêncio surgiu. Passaram-se alguns instantes até que ele voltasse a
ouvir algo.
- Quem sois?
– disse uma voz forte e quente.
- Eu sou
Kiloren.
- Um lobo que
fala línguas? Desconhecia tal género de lobos. – havia uma certa surpresa no
seu tom de voz.
- Não sou
lobo. – disse Kiloren a medo. Quem acreditaria em si? À excepção da sua amada
Bellanna?
- Mas se não
sois lobo, como estas dentro de um? – a voz soava cada vez mais surpresa.
- O lobo é
que está dentro do meu corpo. Em tempos fui homem. Mas agora sou lobo, e sou
incapaz de o controlar.
O silêncio
desta vez durou muito mais tempo. Kiloren sentiu-se ridículo e só. Como poderia
alguém acreditar nele? Nunca ele tinha ouvido nada sobre tal. E se tivesse
ouvido, gozaria com tal história. Contudo, a voz retornou e disse:
- Tens um
lobo dentro do teu corpo, e ele tomou conta dele? Então como estás em forma de
lobo?
Desta vez foi
Kiloren que fez o silêncio surgir. Como poderia explicar algo que nem ele msmo
compreendia plenamente? Pensou durante algum tempo sobre a melhor forma de
explicar isso. Até que tentou explicar o mais detalhadamente, e ao mesmo tempo
o mais sensatamente. A voz que sova dentro da sua cabeça apenas murmurava hums.
Após explicar, a voz iniciou:
- Então
deixe-me lá ver se compreendi. – pôs as ideias em ordem, e começou – Eras
homem. E fostes atacado por dois lobos. Tinhas o peito rasgado e estavas
completamente ensaguentado. Comeste o coração, e bebeste o sangue de um lobo.
Sobreviveste a ferimentos mortais, sofreste alterações estranhíssimas no corpo,
e por fim, ao final de um mês tornaste-te num lobo. É isso?
Kiloren ouviu
tudo aquilo, e a primeira coisa que lhe surgiu foi que até mesmo ele acharia
tal coisa impossível. Mas continuou:
- Sim. Foi
exatamente isso que aconteceu.
- Eu
compreendo como essa tal besta, como a chamas, foi parar ao teu corpo. Ao
beberes o sangue e comeres o seu coraçao, transportas-te-a para dentro de ti.
Não é normal que isso aconteça, contudo é possível. Mas não percebo como
poderias ter-te transformado em lobo. Não consigo entender como tal se passou.
- Quer dizer
então que todas as pessoas que o lobo comeu estão dentro de mim?
- Não. Isso é
algo muito raro de acontecer. E nunca sucede com pessoas.
- Entendi. Mas
com razão a como é que eu me tornei em lobo eu também não percebo. Só sei é que
ele tomou conta do meu corpo.
- E não
consegues voltar a tomar conta do corpo?
Kiloren
dirigiu-se à besta, para a tentar demover da sua posição, mas um safanão bastou
para o afastar.
- Não. É
muito mais forte que eu. Creio que se me aproximar demasiado tenho a mesma
sorte dos outros coitados que ele foi encontrando pelo caminho. – teve a breve
sensação de ter o estômago às voltas, apesar de agora não comandar o seu corpo.
- Creio que
isso não aconteceria.
Kiloren ficou
pasmo.
- Como é que
não aconteceria?
- Simples. O
corpo é teu. Sem ti morre, mesmo que ele esteja lá dentro. Pode não passar de
um lobo, mas parece saber essa realidade. O que necessitas é saber combatê-lo.
- Como?
- Pois – a
palavra deslizou durante alguns instantes. Ele não sabia o que responder. Foi
então interrompido.
- Não sabes
pois não?
A voz saiu
triste e desanimada.
- Não. –
pareceu ter entristecido apenas por dizer tal palavra.
- Não vos
incomudeis. Já me agrada puder falar com alguém. – o tom da voz de Kiloren
pareceu alegrar-se, mas não durou muito tempo assim, pois a besta voltava a
alimentar-se.
- Não me
admira que te desagrade aquilo que esse lobo faz.
Kiloren ficou
hesitante. Nisto, perguntou-lhe:
- Desculpa,
mas como consegues comunicar comigo, sem estar junto de mim? – pareceu ter
escutado uma gargalhada.
- Eu sempre
comuniquei com lobos. Não sei porquê, nem como, mas sempre consegui comunicar.
Estivesse o lobo perto, ou distante. Como tu és metade de um metade do outro,
consigo comunicar contigo.
A voz quente
e forte conveceu Kiloren. Mas isso não lhe bastou.
- Então como
sabes o que esta besta está a fazer?
- Consigo
perceber o que ela está a fazer. Não consigo ver, mas apercebo-me. E parece-me
bastante desagradável. – a sua voz encheu-se de escuridão.
- Impossível
de suportar. Tento não olhar para o que ele faz, mas nem sempre me consigo
distrair dos sons também.
- Deve ser
bastante complicado.
- Perdão, mas
não sei o seu nome.
- Dargor.
Este estranho
relacionamento pareceu acalmar o espírito de Kiloren. Passaram-se mais alguns
dias, até que passou um mês. Ao fim do vigésimo oitavo dia, na última noite de
lua cheia, Kiloren retomou o seu corpo e a sua forma. Continuava a ter um pelo
rasteiro, e uma fisionomia grande e robusta, mas nada de sinais exagerados na
presença do lobo. Contudo, ele sentia que o lobo ainda morava no seu interior.
Continuou a falar com Dragor à distância, sem nunca chegar a saber de onde ele
era, nem como ele era.
Era bom ter o
corpo de volta. Voltar a ser como se lembrava. Sentia-se mais vivo que nunca.
Livre. Mas havia um sabor estranho na sua boca. O sabor de sangue. Só o pensamento
em tal coisa estremeceu-lhe o corpo todo. Procurou de imediato uma fruta doce e
sumarenta para afastar aquele sabor horrível. Felizmente, não teve de procurar
muito.
A noite
poisou sobre ele como o sol num horizonte brilhante. O cansaço abateu-se sobre
o seu corpo, e adormeceu. Enquanto dormia, imagens começaram a sobrevoar-lhe a
mente. Começou a sonhar.
Voltou então
a ver uma neblina azulada, tal como já tinha visto à tempos atrás. Atrás dessa
neblina, uma voz que já não lhe era completamente desconhecida, mas que de
início não se tinha apercebido de quem é que era. Começou então a ouvir
“Sanirah está bem”. A voz era rouca e desgastada pelo tempo. Era Vímia.
Percorreu a neblina, com uma estranha sensação no peito. Sentia algo que nunca
tinha sentido antes. Parecia quase uma voz. Uma luz. Uma certeza. Olhou à sua
volta, e estava de novo junto da casa de Bellanna. Vímia estava à porta, mas
não estava sozinha. Bellanna estava com ela. A luz que incidia sobre Bellanna
era diferente de toda a outra que estava ali. Ela olhou-o, e sorriu-lhe.
Acordou.
Parecia desolado, pois desejava voltar a falar com a sua amada, dizer-lhe o
quanto a amava e o quanto a desejava. Mas só saber como ela estava já lhe
bastava. Foi com este último pensamento, que surgiu-lhe algo de estranho no
peito. Algo que ele tinha a certeza de já ter sentido. Novamente, era quase uma
voz, uma luz, uma certeza. As sua feições aligeiraram-se. E ele soriu. Havia
dentro dele a certeza de que Bellanna estava bem e que o amava. Era um descanso
que surgia e que o acalmava imenso. Saber que a sua amada estava bem e que o
amava, era o melhor que lhe podia ter acontecido.
A ideia de
poder estar novamente com ela acariciava-o internamente. Era como água fresca
em dias quentes. Decidiu-se então a ir ter com ela. Caminhou durante vários
dias na direcção da floresta de Âmmodh. Todos as noites a imagem de bellanna
abençoava-lhe os sonhos. Eram um mel delicioso que lhe amaciava o âmago. Melhor
que isto, só puder tê-la novamente nos
seus braços, voltar a sentir o seu doce cheiro, sentir a sua pele sedosa
e macia. Eram muitos os motivos pelos quais ele queria voltar.
Finalmente
chegou à orla da floresta de Âmmodh. Era noite. Uma noite bastante fria. Caía
uma ligeira cacimba. O vento parecia querer cortar a face. Deixou-se adormecer
abrigado às árvores. Nesta noite, os sonhos não lhe surgiram. Sentia passar-se
algo. O sono foi turbulento. Quando acordou, reparou que corria. E que corria
sobre os pés e as mãos. Aliás, corria sobre as patas. Foi então que reparou que
já não era ele que comandava o corpo, mas sim a besta. E que era novamente um
lobisomem. Uma triste realidade que o assolava. Contudo, desta vez, havia algo
pior. A besta caminhava através da floresta de Âmmodh. Um gelo apoderou-se
dele. Sentiu-se petrificado. Explodiu então de raiva, lançando-se à besta, que
sem dificuldade alguma o atirou de volta para onde ele estava antes. Sentiu-se
impotente e incapaz. Surgiu-lhe então a voz de Dragor:
- Que se
passa Kiloren?
- Esta besta
voltou a tomar conta do meu corpo.
- Eu
apercebi-me. Senti ela a voltar.
Kiloren não
disse nada. Continuava a achar estranho aquela capacidade que aquele homem
tinha. Continuou após uns instantes.
- O pior não
é isso. É que eu caminhei na direcção de Bellanna enquanto eu estava no poder
do meu corpo. E agora ele está no caminho dela.
A sua voz era
de uma preocupação imensa. Parecia capaz de qualquer coisa para impedir que
aquilo acontecesse.
- Continuas
sem conseguir demovê-lo do poder do teu corpo?
-
Infelizmente. È muito mais forte que eu.
Enquanto
isso, a besta continuava a correr ofegantemente na direcção da casa de
Bellanna. Kiloren sentia-se cada vez mais afligido e incapaz de a poder ajudar.
Sentia-se irremediavelmente estúpido. Como podia ele ter sido capaz de tamanha
infantilidade? Nem ele mesmo sabia reponder à sua propria pergunta. Olhou
através dos seus olhos e começou a reconhecer aquelas àrvores. Estava tão
próximo, e tão distante ao mesmo tempo. Chegou então à casa de Belanna.
Kiloren
sentia-se apavorado. Era um pesadelo. Ele sentia sarcasmo vir da direcção da
besta. Percorreu juntamente com a besta toda a clareira onde a casa se situava,
mas nada de Bellanna. A casa estava tal e qual como ele se lembrava dela. Nada
havia sido movido. Quando reparou que ela não estava ali, ele descansou. Mas
algo abateu-se sobre ele. Se ela não estava ali, onde estava?
A dúvida
pairou sobre ele uns instantes. Parou então essa pensamento, e lembrou-se que
conseguia sentir se ela estava bem, que o amava. Mas não sentia nada. Apenas um
vazio. Nada nele lhe dava certezas.
Durante
alguns dias, deixou de ter poder sobre o seu corpo, até que a besta se cansou
novamente. Ele não sabia o que fazer para ganhar o corpo à besta. Era algo que
ele desejava, mas que não sabia como o fazer.
Novamente
humano, e a dominar o seu corpo, ele começou a ter aquela bela sensação de que
Bellanna estava bem, e que o amava. Caiu sobre os joelhos, e as lágrimas
pareciam querer percorrer-lhe a face. Sentiu-se descansado e em paz. Percebeu
então que precisava de estar em união com o seu corpo para sentir se Bellanna
estava bem.
Apenas dois
dias se passaram até que a besta tomasse novamente posse do seu corpo.
Curiosamente, antes da besta tomar conta do corpo, este já se tinha explodido
para lobo. Isto intrigou-o. Será que aquela besta só existia como lobo?
A questão
assolou-lhe a mente durante algum tempo. Surgiu então Dragor. A sua voz era
sempre apaziguadora. Falou com ele durante um bom bocado, até que Kiloren viu
novamente matança na sua frente. Era algo aterrador e extremamente desagradável.
Então Kiloren colocou-lhe uma questão.
- Dragor,
reparei que esta besta só toma conta do sorpo, após estar em forma de lobo.
Consegues perceber o porquê?
Dragor
demorou a responder. Era deveras uma questão para a qual ele não tinha uma
resposta formulada. Mas era deveras interessante. Finalmente disse:
-
Possívelmente porquê não consegue controlar o corpo humano. – parou durante uns
breves instantes, e depois retomou – Já alguma vez tomaste conta do corpo de
lobo?
- Não. Nunca
apanhei essa fase.
- Achas que
te consegues transformar?
- Não sei. Só
experimentando. – a sua voz era sombria, como se tivesse descoberto um segredo
escondido.
- Tenta.
Vários dias
de massacre passaram, até que Kiloren voltasse a ter o seu corpo de volta a seu
poder. Mal o tomou, tratou imediatamente de tentar transformar-se em lobo, mas
foi em vão. Ele não sabia como fazê-lo. Sentia-se tão impotente, quanto
entristecido. Só havia uma coisa capaz de o fazer sorrir. A certeza de que
Bellanna estava bem, e que o amava.
Os seus
sonhos continuavam como grandes cascatas de àgua cristalina e refrescante. Em todos
eles, ele via a sua amada. Um ser divinal de cabelos vermelhos. Deveras bela.
Mas todo o
resto o entristecia. Não podia estar com ela, pois a poría em perigo, não podia
aproximar-se de outro ser humano, élfico, ou de outra raça, sem que o pusesse
em perigo. Dirigia-se então para a zona mais àrida, abandonada, que não tivesse
o mais pequeno ser vivo que existisse. Isto não impedia a besta de matar, mas
atrasava-a.
Novamente, a
besta tomou conta do corpo. Era noite, e numa zona tão àrida como a que ele
estava, a lua e as estrelas eram luzes cintilantes e iluminadoras. A lua estava
em quarto crescente, já a ascender para lua cheia. Foi então que Kiloren raciocinou
sobre algo que tinha esquecido.
Quando Dragor
voltou a falar com ele, Kiloren atrapalhou-se com uma imensidão de coisas que
lhe queria dizer. Dragor acalmou-o, e pediu-lhe que lhe explica-se calmamente.
- Se eu não
estou enganado, na noite em que o meu corpo se tornou pela primeira vez em
lobo, era uma noite de lua cheia.
- Hum, acho
que estou a perceber onde queres chegar. – a sua voz era pensativa e ponderada.
- Tenho que
ter a noite em que a lua cheia esteja perfeita. É bem possível que ajude.
- É deveras
uma boa ideia. Mas fá-lo enquanto essa besta tiver a dormir. Assim não serás
interrompido.
- Achas que
depois de me conseguir tranformar em lobo, consigo expulsar esta besta do meu
corpo?
- Não sei se
será assim tão fácil – a sua voz tinha dúvidas – mas decerto que ajudará.
Passaram-se
três dias. A lua cheia estava no seu auge. Grade e bela. Parecia uma grande
pérola. Kiloren olhou-a. Mas a besta continuava a tomar conta do corpo, e não
parecia querer sair. Mas antes da noite terminar, ela deixou o corpo para
Kiloren, que tratou imediatamente de o agarrar com todas as suas forças. Dentro
de si surgiu aquela certeza, que o encheu de cofiança e vontade, fazendo-o
tentar. A besta dormia um sono aterrorizador. Mas nada demovia Kiloren de tentar.
Fechou os olhos, agachou-se, e subitamente, o seu corpo tranformou-se. A
alegria corria-lhe pelas veias.
A besta
sentiu uma mudança, e acordou em sobressalto. Correu para retirar Kiloren do
poder do corpo, e conseguiu. Mostrou-lhe os dentes em sinal de intimação, mas
não lhe fez nada. Sabia perfeitamente que sem Kiloren, ele não existiria. Mas
sabia que tinha que terminar com aquelas tentativas de Kiloren de tentar tomar
conta da sua metade. Fez-se então a caminho de Dragor. Não sabia onde ele estava, não sabia por onde
começar a procurar, mas tinha de enconrá-lo e depressa.
Kiloren
sentiu que a besta preparava-se para algo, mas não entendia o que seria. A sua
procura frenética e exaustiva incomodava Kiloren, principalmente por não
compreender a natureza de tal comportamento.
O tempo que
ficara em poder do corpo tinha sido o mais curto de sempre, e como lobo ainda
fora mais curto. Mas aquela pequena vitória soube-lhe bem. Como vinho e mel.
Sentia-se alegre e mais confiante que nunca. Olhou todos os movimentos que a
besta fazia, tentava decorá-los, pois podiam também ser alguma maneira de
conseguir obter o seu corpo de volta. Ele não sabia o que fazer, mas haveria de
tentar tudo o que fosse necessário para ter o seu corpo de volta.
A corrida
exaustiva empurrou a besta para fora do comando do corpo, transformando-o
novamente em humano. Kiloren aproveitou então para voltar a tomar conta do
corpo. Assim que lhe assumiu o comando, sentiu o calor do sangue a correr-lhe
sobre o corpo, o doce cheiro a lotus, a luz ténue do fim de dia, e a doce
sensação de que Bellanna estava bem, e que o seu amor por ele era grande. Sentia-se
vivo, novamente. Olhou para o seu arquinimigo, mas na sua face não havia uma
pinga de ódio, mas de um profundo deleite de quem vai assumir o comando, para
nunca mais ser retirado dele.
Respirou
fundo. Sentiu o ar fresco da noite entrar-lhe nos pulmões. Expeliu-o
calmamente, enquanto tentava transformar-se novamente em lobo. Não era uma
noite de lua cheia. Mas ele tinha de tentar. Não descansaria se não tentasse.
Era demasiado importante. Fechou os olhos, e tentou. Uma, duas, três vezes, e
mais umas tantas. Mas não conseguiu. Era
uma transição difícil e complicada. Mas não se deixou esmorecer. Havia de conseguir.
Esperou que a besta volta-se a tomar conta do seu corpo, e veria como ela o
fazia.
Assim que a
besta acordou, tratou logo de empurrar Kiloren fora do comando do corpo.
Conforme o fazia, o corpo tranformava-se automáticamente em lobo. Não havia
truques, nem havia maneira de o fazer. Apenas acontecia. Por uns poucos
instantes, o terror assulou-o, e sentiu a sua força escorrer-lhe por entre os
dedos. Mas tinha de tentar novamente, pois voltar a estar com Bellanna dependia
disso.
Durante algum
tempo, viu a besta vaguear as terras sem rumo certo. Parecia que queria
encontrar algo. Tentou não destraír-se com isso, e concentrou-se. Juntou dentro
de si todas as forças que tinha conseguido encontrar. Tinha de lutar com aquela
besta custa-se o que custar. Ouviu então a voz de Dragor.
- Kiloren.
- Dragor. – a
sua voz saiu calma e serena.
- Sinto a tua
presença próxima.
- É a besta
que está a controlar o meu corpo.
- Creio que
vem à minha procura.
- Porque
dizes tal coisa? – uma dúvida assolou o interior de Kiloren.
- Porque já
há alguns dias que o sinto a vaguear sempre na minha direcção. Decerto que
apercebeu-se da tua intenção, e deve pensar que eu sou quem te tem estado a
ajudar.
Kiloren
calou-se a ouvir o silêncio que se fazia ouvir.
- Tem de ser
feito. – Disse determinado.
Encheu-se de
coragem, e saltou para o corpo da besta. Sentiu um forte safanão, mas a sua
vontade era maior que a força da besta, e aguentou-se. Tirou-o do poder do seu
corpo, e sem ninguem para o comandar, o corpo caiu que nem uma pedra no chão,
como que inanimado.
A luta era feroz
e aguerrida. A besta usava de toda a força que dispunha para imobilizar
Kiloren, mas se o mata-se morreria também, enquanto que Kiloren sabia que não
conseguiria matá-lo, pois era muito mais forte que ele, mas teria que
imobilizá-lo de alguma forma, e tomar conta do corpo enquanto este tivesse na
forma de lobo.
O corpo
inanimado parecia sofrer de convulsões a cada vez que os dois chocavam um com o
outro. Não parava de se tranformar ora em humano, ora em lobo,
ininterruptamente. Os olhos revirados, e a respiração calma e linear marcavam
um estranho ser.
A luta ainda
decorria sem grandes avanços, ambos se começavam a sentir cansados. Entre as
várias tentativas de atingir Kiloren comas garras, a besta tombou por puro
desiquelíbrio, e Kiloren aproveitou aquela pequena vantagem. Correu para o
comando do seu corpo, e conseguiu acordá-lo daquela inércia. Ergue-se como
humano, mas logo de seguida, cresceu como lobo. E pela primeira vez, Kiloren
uivou como lobo.
A luta ainda
não tinha acabado, mas tinha sido marcado uma grande diferença para Kiloren, a
qual, ele agora sabia usar. A luta tornou-se desigual, pois Kiloren agora sabia
lutar com as mesmas armas que a besta usava, e ainda tinha o trunfo de saber
usar as armas de ser um humano. Desferia golpes com precisão, e mais rápidos
que os da besta. Após algum tempo, a besta caía sem forças e completamente
vencida. Não se sentia capaz de dar mais um passo que fosse. Kiloren gritava de
alegria. Tinha feito frente ao seu inimigo, e tinha-o vencido. Tomou controlo
do corpo, que estava como humano, e transformou-se sem qualquer dificuldade no
lobo. Durante algum tempo, correu sem sentido, antes porque se sentia livre.
Quando
finalmente parou, sentiu-se sozinho. O espírito que o tinha acompanhado durante
toda a transformação havia deixado o seu corpo. Ele era agora o único no seu
corpo.
Ouviu então a
voz de Dragor na sua mente, mais próxima e mais inteligível que nunca.
- Que se
passou? – Dragor havera sentido uma mudança, mas não tinha a certeza do que
tinha sido.
- Consegui
vencer a besta – disse com uma voz de felicidade, e de orgulho.
- Que
aconteceu então a essa besta?
- Não sei –
respondeu com uma voz soturna – desapareceu.
- De mal o
menos.
A conversa
durou algumas horas, nas quais Kiloren contou permonorizadamente a luta entre
ele e a besta. Dragor disse-lhe então que fosse ter com ele, para que ele visse
com os seus próprios olhos o lobo que todo o povo falava.
III Capítulo
- Caminhar sem
destino –
As lágrimas
escorriam-lhe vigorosamente nas suas faces já vermelhas de tanto chorar.
Encontrou algum conforto no chorão que a abraçou quando ficara sozinha, mas
esse conforto era pouco para quem tinha ficado só e abandonado no mundo. A
manhã surgiu fria e desconfortante. De Kiloren não havia sinal. A floresta, que
durante tantos anos lhe havia completado os dias, agora parecia morta. Não
haviam cantares, nem chilreares. O único barulho que se ouvia era o do vento,
que chicoteava impiedosamente a casa.
A casa estava
demasiado vazia. Parecia uma catacumba. Nem um pequeno som, um pequeno cheiro.
Sem uma única companhia para lhe ajudar a atravessar mais um dia. Esta solidão
era impossível de aguentar. Tudo à sua volta lhe fazia recordar de Kiloren. A
cama, a cozinha, o alpendre, tudo lhe recordava dele. Desde o primeiro dia em
que o tinha encontrado na floresta, quase morto, até ao dia em que tinham
partilhado sentimentos um pelo outro. E agora, tudo era um silêncio, uma
ausência da sua presença. Intolerável. Na sua mente suriu apenas uma frase,
“tenho de sair daqui”.
Deixou-se
ficar apenas por mais dois dias. Dois dias que foram tão difíceis de aguentar,
como lentos a passar. Tudo era cinzento, sem cor. Ela sentia a morte a passar
as suas mãos sobre ela, como as de um amante fervoroso. Não podia ficar ali
muito mais tempo. Era difícil demais para aguentar. Foi então que saiu. Agarrou
apenas no livro que lhe auxiliaria em todas as poções que sabia, e outro que
tinha escrito todas os feitiços que sabia. Evergava um robe preto e roxo. As
mangas desciam uns dedos após o término da mão, num veludo preto. Um pequeno
capuz cobria os seus cabelos vermelhos, cobrindo também a sua testa, terminando
na linha dos olhos. Nas costas do robe, desciam duas listras roxas, separadas
por uma listra mais fina preta. As listras roxas tinham runas bordadas nelas,
como para protecção de quem o usasse.
A caminhada
foi feita no sentido por onde Kiloren havia saído, mas as pegadas já não eram
visíveis. O mau tempo tinha-as apagado, deixando apenas um manto de folhas e
terra húminda, misturadas sem sentido. O cheiro a terra molhada perfumava o ar,
mas nem isso a acordava da sua dor. Continuou sem parar, e sem rumo. Por alguns
dias andou pela floresta de Âmmodh. Começou então a caminhar para Este.
Caminhou por entre rios e florestas. Dia e noite. Sem ter sinal de Kiloren. As
aldeias por onde passava, pareciam sempre tristes e sombrias, mas ela nunca
parou para perceber o que se passava. Não reparou no rasto de mortandade que se
apresnetava tão próximo de si. Irremediavelmente comprometida com os seus
pensamentos, continuou a caminhar.
Passou-se mês
e meio, e a sua procura não mostrava frutos.
Estava sozinha. Tinha frio. E a comida era escassa onde ela se
encontrava. Um lampejo branco rasgou o céu negro. Uma lua em forma de foice
iluminava com a sua luz débil o céu, despido de estrelas. Anunciava-se uma
tempestade forte. O vento aumentava a sua intensidade, e as árvores bailavam ao
seu sabor. Levantou-se do chão, pegou nas poucas coisas que trazia consigo, e
seguiu caminho.
Duas horas
mais tarde começaram a cair as primeiras gotas. Grossas, mas irregulares. Mas a
sua caminhada não tinha sido infrutífera. Chegara à floresta de Fla’lel, nas
Terras de Maliu. Podia não proteger completamente, mas sempre estava
minimamente abrigada.
As árvores
altas, de madeira negra, cobriam com os seus longos braços o céu, não deixando
transpôr um fio de luz que fosse. Olhou para o alto, e ao reparar nisso,
apercebeu-se logo que afinal, estava bem protegida. Um sorriso esboçou-se nas
suas faces, mas rapidamente esmoreceu. Olhou à volta, e foi então que dois
relâmpagos a pregaram ao chão de medo. Pareciam dois gritos de um deus raivoso.
A chuva começou a fustigar as árvores com violência.
Mas estava
bem abrigada. Só vez após outra é que sentia uma pinga a cair-lhe em cima, ou
próxima do seu corpo. Não conseguia ver nada à sua frente devido à falta de
luz, mas isso não a fez parar de avançar. Continuou a embrenhar-se na floresta,
até que, ao dar um passo, a sua perna enterrou-se até ao joelho. Os nervos
dispararam, e por uns poucos de segundo, ela sentiu-se estática derivado ao
medo. Foi rapidamente substituído pelo pânico, que a fez querer sair dali o
mais rápido que podia. Esbracejando para sair, deixou cair tudo o que
transportava consigo em solo firme, mas por sua vez, perdeu o equilíbrio,
acabando por cair para a frente. Ficou completamente encharcada. Só então éque
sentiu o cheiro que até então tinha estado algo escondido. Havia um misto de
putrefacção com bafio. A água onde tinha acabado de entrar era mais grossa que
o normal, e no fundo, a terra era mole, enterrando qualquer ser que lhe pusesse
os pés em cima. Felizmente, a profundidade não era grande, e agora que o
cheiro, e a água fria a tinham acordado do pânico, ela conseguiu sair daquelas
águas pantanosas.
Arrastou-se
desgastada para a margem, onde estavam as suas coisas,e deitou-se. O chão
estava coberto de folhas e terra húmida, mas ela não quis saber. Deixou-se
adormecer.
Quando
finalmente acordou, já era dia. Os poucos raios de sol que passavam por entre
as folhas iluminavam aquela densa floresta. Pensou, por instantes, estar
novamente na floresta que a tinha visto crescer. Mas, o cheiro trouxe-a à
realidade. Parecia pior do que ela se lembrava. Sentia-se cansada para se
levantar, mas tinha de o fazer. Rolou para o outro lado, e viu, parado à sua
frente, um ser verde a olhá-la intrigado. Ela tentou conter um grito de terror,
mas não conseguiu por completo, saindo um pequeno grito, como de alguém que se
aleija. De um pelo sentou-se, mas o pequeno ser não se mexia. Ela esfregou os
olhos, para perceber se estaria ainda a sonhar, mas quando voltou a abri-los,
viu o mesmo ser, na mesma posiçao, a olhá-la entretido. Olhou então para si
mesma, e reparou que o seu vestido tinha ficado um pouco rasgado, deixando os
seus seios ligeiramente descobertos. Envergonhada e enervada de um ser tão
minúsculo ser tão descontraído e desrespeitador, pegou de rompante no seu robe,
e cobriu-se. Com o puxão do robe, o mesmo esvoaçou, passando a escassos
milímetros do nariz pontiagudo daquele ser, mas ele não se demoveu. Ela olhou-o
intrigada.
Era pouco
maior que a palma da sua mão. Todo ele era verde. Um verde escuro que o
confundia no meio da vegetação da floresta. Os seus dentes pareciam
prelongações dos lábio, bem como as unhas pareciam perlongações dos dedos.
Tinha um ar assustador, mas ao mesmo tempo, tinha um ar curioso.
Ele
aproximou-se dos joelhos dela. Ela olhou-o desconfiada, mas não se deixou
intimidar.
- Elfo.
Ela olhou-o
incrédula. o seu queixo caiu, e ficou caído até que o pequeno ser a chamasse a
atenção.
- Sabes que
isso é falta de educação – disse o pequeno ser.
Ela olhou-o
por mais uns curtos instantes, de queixo caído, até que finalmente fechou a
boca.
- De onde
vens elfo?
- Ah…
desculpa… venho de…
- Não digas
mais. Sabes que os da tua espécie não são benvindos por aqui. – disse-lhe
rispidamente.
- Desculpa.
Não sabia. – a sua voz tremia.
- Como não
sabias? – a duvida ressentia-se na sua voz.
- Não sou de
cá. Já camiho à dois meses… ou quase.
- E de onde
vens tu elfo?
- De Oeste.
- Pois ficas
agora sabendo que os da tua espécie não são benvindos aqui. Por isso, podes ir-te
embora.
- Mas eu não
sei onde estou, nem para onde ir.
- Isso não é
problema meu.
Ela olhou-o
com tristeza nos olhos. Sentia-se só, e aquele pequeno ser tinha sido o único a
dirigir-lhe a palavra. Já à bastane tempo que ela não falava com ninguém. A voz
saiu-lhe sumida, tentando suprimir um choro miudinho, um nó que lhe trancou a
garganta. Cerrou os olhos e engoliu em seco. Ele olhou-a serenamente, e
virou-lhe as costas. Um assobiu ouviu-se aproximar rapidamente, como uma
flecha. As asas largas de um falcão empurravam vento para o chão, para evitar o
seu embate, e já quase no chão, ele pega o pequeno ser verde, e voa velozmente.
Aterrorizado, ele começa a pedir ajuda.
- Socorro –
ele gritava a largos pulmões – alguém que me ajude.
Bellanna
disse algumas palavras em surdina. Repetiu-as algumas vezes, até que o falcão
ficou parado, apenas movimentando as asas para não cair. Ela esticou o braço na
direcção do falcão, e abriu a mão. O falcão, muito calmamente, retornou a ela,
e deixou cair o pequeno ser na palma da mão de Bellanna, voando para longe de
seguida.
Ela pô-lo no
chão. Ele ainda estava nervoso por causa do sucedido, mas rapidamente se
recompôs. Olhou-a atrapalhado.
- Nunca
nenhum dos da vossa espécie nos tinha ajudado.
- Isso é
porque eu não tenho nada que ver com eles.
- Então vem
comigo, eu falarei de ti ao nosso líder.
A caminhada
foi curta. Avançaram pântano a dentro, até chegarem junto de uma árvore escura.
Nela havia um buraco com o tamanho ainda considerável. Cerca de dois palmos de
diâmetro. Dentro dele, estava outro ser idêntico, mais de um verde mais escuro.
A conversa que se seguiu foi curta, mas impossível de entender. Eles falam numa
língua própria, que é incompriensível. Mas estava bastante aguerrida. Quando a
conversa terminou, o líder deles pediu a Bellanna que se chegasse mais próximo.
Olhou-a de alto a baixo, e virando-se para o outro pequeno ser que a tinha
levado disse-lhe:
- Não há
problema de ela estar cá. Sinto dentro dela um núcleo negro. Mas tens de ser tu
a explicar-lhe o que ela pode e não pode fazer.
Seguiu-se um
silêncio, e o líder mando-os ir embora.
- Suponho que
aquele fosse o vosso líder.
- Supões bem.
- O que são
vocês?
Ele olhou-a
estático.
- Eu já disse
que não sou de cá. De onde venho, nunca vi ninguém como vocês.
- Nós somo
goblins.
Ela olhou
para ele, e de seguida olhou em frente, deparando-se com uma imensidão de
pequenos seres, goblins, a passear pelo pântano.
- E como te
chamas? Acho que posso saber, uma vez que te salvei. – disse esboçando um
sorriso maroto.
- Vocês não
conseguem prenunciar os nossos nomes.
- Como assim?
– ela não entendia como tal era possível.
- Eu vou-te
dizer mais ou menos o meu nome, na tua lingua. É Vrrrahrreff.
-
Vrrrahrreff? Disse bem? – ela continuava a não entender como era possível não
conseguir pronunciar algo tão simples.
- Pois, agora
só falta pronunciares os espaços pelo meio.
O espanto
estanpou-se na sua face.
- Como assim?
Respirou
fundo, olhou para cima, e repondeu-lhe muito simplesmente – Esquece.
O dia passou
calmamente, pelo menos por agora não se sentia sozinha. Já estava farta de
caminhar. Precisava de descansar durante algum tempo, e aquele parecia-lhe ser
o sítio ideal. Passou o dia todo a saber aquilo que podia fazer, e aquilo que
não podia. Felizmente não eram muitas as proibições.
No fim do
dia, o goblin disse-lhe que podia dormir numa árvore que havia no pântano, que
tinha braços suficientemente fortes para a suportar.
- Posso-te
chamar Vra?
Ele olhou-a
de esguelha, mas disse-lhe que sim com a cabeça. Ela olhou-o e continuou.
- Posso
fazer-te uma pergunta?
- Sim diz. –
sentia-se algo arrependido de a ter trazido consigo, mas não se sentia capaz de
a ter deixado abandonada, perdida na floresta.
- Porque
vocês se dão tão mal com os elfos?
Ele olhou-a
vagarosamente, percorrendo cada milímetro da face dela.
- Porque
estão constantemente a tentar mudar as nossas maneiras de viver a nossa vida.
Querem que sejamos como eles, uma vez que somos “inteligentes” como eles dizem.
Mas nós queremos viver a nossa vida à nossa maneira. Se não queremos fazer as
coisas como eles fazem, não as fazemos. Se gostamos de ir e assustar animais,
assustamos. Não precisamos que ninguém
nos diga o que fazer.
- Julguei que
fosse algo pior.
A cara de Vra
empalideceu. Senti de seguida os calores a subiram-lhe ás bochechas, mas
manteve-se calado. Só após um instante é que lhe deu uma resposta.
- Mas é assim
que está, e é assim que vai ficar.
A conversa
ficou por aí. Bellanna adormeceu facilmente, pois sentia-se muito cansada,
devido aos últimos dias. E apesar de estar a dormir nos ramos de uma árvore,
era até bastante confortável.
A manhã
seguinte surgiu novamente com um cheiro intenso a putrefacção. O sol era escasso
onde ela estava, mas mesmo assim, no pântano haviam bastantes buracos que
deixavam passar mais luz. Ela abriu calmamente os olhos, e deparou-se com uma
centena de goblins, machos e fêmeas a olhá-la com olhos inquisidores. Muitos
estavam até em cima dela. Tentou levantar-se, mas preferiu continuar deitada,
não fosse algum daqueles goblins magoar-se com a queda. Pediu gentilmente para
que saíssem de cima dela, procorou com os olhos Vra. Encontrou-o no fim daquele
ajuntamento todo. Estava quieto e sereno a olhar para todo aquele aparato. A
linguagem que eles usavam era estranha, e impossível de perceber. A pouco e
pouco, quando perceberam que ela tinha acordado, deixaram-na levantar-se.
Nenhum deles ousava dirigir-lhe a palavra.
Pareciam não
quere sair de junto dela, até que surgiu o líder dos goblins, obrigando-os a
voltar ao trabalho. Cada um a seu posto. E os que não tinham nada para fazer,
que encontrassem. Vra dirigiu-se a ela, e sereno como ele era sempre, pediu-lhe
desculpas pelo comportamento impróprio dos seu irmãos. De seguida, ele
dirigiu-se também ao seu posto. Bellanna seguiu-o. Sentia coriusidade sobre
aqueles pequenos seres.
Vários dias
passaram, e onde a sua presença tinha sido mal aceite, era agora bastante útil.
Ela chegava com muito mais facilidade a sítios mais elevados, e o seu
conhecimento em feitiçarias e curas era útil para os curandeiros dos goblins.
Os dois livros que ela levara, eram diariamente analizados pelos curandeiros, e
em retorno, eram-lhe concedidos alguns conhecimentos obscuros, tais como
venenos e fracos feitiços de doenças. Ela sentia-se quase em casa, não fosse o
cheiro imundo que a assolava diariamente. A sua mente porêm, estava cosntantemente
a relembrá-la de Kiloren. Ele já tinha partido fazia três meses, e ela nunca
mais o vira, nem sequer tinha ouvido falar nele. Pelo menos os goblins não
sabiam da existência de tal ser.
Muitas luas
passaram, até que se passaram seis meses que Kiloren tinha desparecido, meio
homem meio lobo. Bellanna sentiu tristeza e pesar. Sentia a sua falta, e queria
imenso estar com ele, mas não sabia onde procurá-lo. Vra viu-a triste, mas
quando ele se começou a aproximar dela, ela afastou-se para ir dar uma volta
sozinha. Não se tinha apercebido que Vra se aproximara dela.
O céu mal se
via no meio da floresta. Mas a luz que brilhava naquela lua cheia, impunha a
sua luz até aos recantos mais sombrios. A floresta estava calma, e apenas o
cheiro que vinha do pântano estragava aquela calmaria.
Bellanna
avançava calmamente, quando surgiu um barulho de arbustos a serem remexidos.
Olhou o arbusto, mas não viu nada que parecesse digno de recear. Estava também
demasiado absorta nos seus pensamentos, desconsiderando os animais ferozes que
podiam haver na floresta.
Na distância
surgiu-lhe a silhueta de um lobo. Ela estancou os seus passos. O lobo olhou-a,
e ela viu no seu olhar um ser doentio. Os olhos vermelhos relembraram-lhe dos
lobos que tinham atacado Kiloren. Olhou à sua volta, mas não tinha para onde
fuugir. O lobo era certamente mais rápido que ela, e voltar para junto dos
goblins iria comprometer uma raça inteira.
Encarou o
lobo de frente, e ele preparou-se para a atacar. Bellanna lembrou-se então do
feitiço que tinha usado com o falcão. Decerto que funcionaria com um lobo.
Começou então a proferir as palavras. Os paços aproximavam-se cada vez mais,
eram cada vez mais velozes. Bellanna fechou os olhos, e continuou a dizer a
fórmula, mas o lobo não parava. Bellanna sentiu-o então a uma distância muito
curta, e ele não parava. De um salto, conseguiu desviar-se da investida do
lobo. Mas o lobo, apesar de não lhe ter acertado, conseguiu arrancar um pedaço
do vestido.
Ela olhou
para aquele pedaço de tecido que estava pendurado nos dentes do lobo, e um
arrepio passou-lhe pelo corpo todo, quando se apercebeu que aquele tecido podia
ter sido um pedaço dela, se não se tivesse desviado a tempo. Olhou novamente
para o lobo, e reparou que no seu dorso estavam duas feridas cicatrizadas, nas
quais não tinha nascido pêlo que as cobrisse. Eram dois golpes com a forma de
um losango, como se de feridas de setas se tratassem. Um lampejo atravessou a
sua mente, e lembrou-se das feridas que tinha imposto sobre o lobo que atacara
Kiloren. Olhou-o novamente, e reparou na marca de uma mão junto do seu pescoço.
Tinha a garganta seca. Começou então a proferir outra fórmula. O lobo investiu
novamente contra ela, mas de repente deixou de a ver.
Bellanna
usara um feitiço para torná-la invisível, e para camuflar o seu cheiro. O lobo,
sentindo-se perdido, voltou por onde tinha vindo, sem voltar a perturbá-la.
IV Capítulo
-
Dragor -
Kiloren tinha
decidido ir ter com Dragor. Podia ser que ele o ajudasse a encontrar Bellanna.
Várias vezes ele tinha retornado à casa dela, mas continuava vazia e cada vez
mais sobria, sem a alegria de Bellanna para a iluminar. O chorão perdera o seu
tom de verde viçoso, para um castanho seco.
As
transformações de Kiloren em lobo tornaram-se quase inatas, mas só usava desse
poder quando fosse verdadeiramente necessário.
Falou com
Dragor sobre o seu desejo de ir ter com ele, e Dragor disse-lhe mais ou menos o
sítio onde se encontrava. Nas montanhas de Cröm. Kiloren recordara-se de já ter
passado junto do sítio onde Dragor estava, numa das vezes em que a besta tinha
tomado conta do seu corpo, e tinha andado a tolher vidas sem o mínimo remorso.
Memórias. Algumas das coisas que ele já tinha visto assolavam-lhe as noites, e
atormentavam-lhe os sonhos. Perseguiam-no mesmo quando estava acordado. Mas, o
que por um lado tinha sido um castigo, por outro tinha sido uma benção.
A caminhada
até junto das montanhas de Cröm durou cerca de dois dias. Kiloren não queria
transformar-se durante o dia, o que fazia com que se deslocasse muito mais
devagar. Parava sempre que podia para ajudar alguém que estivesse em
necessidade, pois sentia que tinha feito muito mal, apesar de não ter sido
directamente ele o culpado, e sentia-se na obrigação de repagar o erro.
As montanhas
de Cröm avistaram-se no horizonte. Montes altos e pontiagudos, largas escarpas
que pareciam não ter fim, uma imagem imponente. O céu era literalmente rasgado
pela rocha negra, envolta num manto branco. O constraste que criava era belo, e
o verde que banhava o sopé das montanhas era apaziguador, quase como que
dizendo que as rochas eram inofensivas. Kiloren caminhou insessantemente até
chegar ao sopé da montanha. O vento era gélido. Descia velozmente pelas
escarpas, e parecia trazer consigo o frio que o gelo e a neve albergavam. Mas a
temperatura corporal de Kiloren era tão alta, que quase não sentia o frio.
Começou então a subir através do que parecia ser um trilho estreito e bastante
inclinado. A rocha por vezes tornava-se bastante escorregadia, e mortalmente
afiada. Kiloren começou a pensar como é que alguém poderia viver numas
montanhas tão perigosas, mas sabia que Dragor estava ali. Continuou a subir.
Após algumas
horas, Kiloren começou a avistar uma superfície plana coberta de neve. Dragor
tinha-lhe dito que haviam muitas superfícies assim, mas que ele estava na mais
ampla de todas. Apesar de esta onde Kiloren estava agora ser bastante ampla,
parecia pequena demais para o que Dragor havera dito. A caminhada continuou.
O vento
tornava-se cada vez mais impiedoso, e fustigava cada vez mais o corpo de
Kiloren. O frio já o começava a aborrecer. Olhou para trás, e viu desaparecer
atrás dele o sopé da montanha. Já não existia verde, apenas preto e branco.
Passaram mais
algumas horas, até que finalmente Kiloren avistou outro plano. Sentia-se a
escorregar cada vez mais, e a perder constantemente o equilíbrio, quando
finalmente pousou o pé numa superfície plana que não o ameaçava de cair. Sentiu-se
seguro.
Este planalto
era bem maior que o anterior. A sua superfície era redonda, e ladeado em três
lados por rocha. Largas montanhas que ascendiam aos céus vigorosamente.
Espalhado por este planalto haviam rochas negras, largas, mas que igual ao
planalto, pareciam ter-lhe cortado o pico, ficando apenas uma base redonda, a
sair ligeiramente da neve. Numa das altas montanhas havia uma gruta. Kiloren
dirigiu-se lentamente para lá.
A gruta era
amena. Parecia que alguém tinha feito uma fogueira para a aquecer, mas não se
via nem fogo, nem fumo. Entrou lentamente na gruta, com alguma dificuldade em
se guiar, uma vez que ainda estava ofuscado do branco da neve. Conforme ia
avançando, sentia-se cada vez mais inseguro.
Uma voz ao
longe parecia querer indicar-lhe o caminho. Era difícil de compreender como ela
soava, e o que dizia, mas Kiloren foi ao seu encontro. Conforme ele ia
avançando, a voz começava a tomar forma. Era forte e vigorosa. Quente. Parecia
entoar uma cantiga numa língua que lhe era desconhecida. Começou a surgir um
foco de luz, e por fim ele viu um enorme salão, entranhado na rocha. Tinha
poucas coisas lá dentro, mas era bastante quente e relaxante. Sentado em cima
de vários panos estava um homem. A sua face demonstrava que era um homem de
meia-idade, mas o seu corpo era extremamente bem definido. Era largo, e apesar
de estar sentado, aparentava ser bastane alto. A cara estava marcada pela
idade, tornando o seu aspecto mais duro e amedrontador. Os olhos eram fundos e
negros. O seu cabelo era um misto de branco com preto, e imensos cinzentos.
Dragor, ao ver Kiloren aproximar-se, levantou-se e saudou-o, fazendo-o
sentir-se mais à vontade.
- Então sois
vós, Kiloren. – na sua cara formara-se uma certa empatia, retirando todo o seu
ar amedrontador.
Levantado,
notava-se perfeitamente a altura fora do vulgar de Dragor. Kiloren olhou-o, e
após uma breve examinação, continuou a conversa.
- E sois vós,
Dragor. – a sua voz tinha alguma incerteza, mas foi rapidamente quebrada pela
simpatia de Dragor.
- Finalmente
chegastes. Deves estar esfomeado. Quando foi a última vez que te alimentas-te?
- Ontem de
manhã. Cacei pela floresta.
- Então
vinde. Contarme-ás tudo pelo que passaste, até à tua chegada aqui, sobre uma
vasta refeição. Passaste por uma experiência bastante invulgar.
Dragor
levou-o para uma sala mais pequena, e mais acolhedora também. O cheiro chegou
às narinas de Kiloren, antes de entrarem na sala. Era de fazer água na boca.
Refastelou-se
até não puder comer mais. Contou-lhe tudo pormenorizadamente, apesar de algumas
histórias já lhas ter contado antes. Dragor escutava-as todas como se fosse a
primeira vez que as tivesse a ouvir.
Kiloren
deixou-se ficar durante algum tempo com Dragor. Sentia-se cansado, e a precisar
de pensar. Queria encontrar Bellanna, mas não sabia bem onde deveria procurar.
Um dia,
Kiloren foi ter com Dragor para lhe perguntar se ele o podia ajudar a procurar
Bellanna.
- A menos que
vá contigo, não tenho como te ajudar.
- Não existe
maneira de perceberes onde ela está?
- Não
Kiloren. Como já te tinha dito antes, eu apenas consigo comunicar à distância
com os lobos, e nada mais.
Kiloren
sentiu pesar no seu coração. Continuava a sentir que Bellanna estava bem, e que
ela ainda o amava. Mas não sabia onde a procurar. Ao único sítio que ele tinha
a certeza que ela pertencia, ela não estava lá.
Tinham
passado quatro meses desde que Kiloren tinha saído de junto de Bellanna. Era
uma noite bastante fria, e ele sentia-se cansado. Queria dormir mas não
conseguia. Levantou-se e foi ter com Dragor.
Estava
sentado no exterior da caverna, mas o frio não parecia ser incómodo para ele.
Dirigiu-se a ele, e viu que os seus olhos estavam cerrados, e a sua expressão
era muito séria.
- Dragor –
disse Kiloren em surdina para não lhe romper de uma maneira abrupta a
concentração.
- Diz Kiloren
– disse Dragor ainda de olhos fechados.
- Tenho uma
pergunta para te fazer. – fez uma breve pausa para formular a sua pergunta – Os
lobos que me seguiram quando eu caminhava errante pelas terras, e que me
atacaram em Âmmodh, eram diferentes dos que eu já vi. Conseguiste comunicar com
eles?
Os olhos de
Dragor esbugalharam-se, e depois relaxaram. Era uma pergunta à qual a resposta
era complicada.
- Sim e não.
Sim, porque eu consegui comunicar com eles antes de eles terem ido no teu
encalso, e não, porque após um certo dia, deixei de os sentir. Era como se
tivessem mortos. Não sentia o espírito deles.
- Mas
conseguiste comunicar com um deles após terem-me atacado, quando o meu corpo
ficou dominado pela besta.
- Sim,
consegui comunicar com esse, mas porque estava no teu corpo. Era diferente.
Kiloren
olhou-o sem o conseguir entender plenamente. Nem tudo o que ele dizia fazia
sentido, mas não o voltou a questionar sobre isso.
- Eu sinto
uma mudança.
- Como assim?
– disse Kiloren surpreso.
- Eu sinto
dois iguais a ti a virem para cá.
- Dois iguais
a mim? – a sua voz tremeu – como é que é possível que exista mais alguém igual
a mim?
- Não sei Kiloren.
Só sei que eles vão chegar muito brevemente. E têm o intuito de nos matar a
ambos.
A manhã
aproximava-se calmamente. Kiloren e Dragor ainda estavam no planalto, a
apreciar o amanhecer no alto da montanha. As passadas fortes na rocha, e as
unhas grossas a arranharem o chão ouviam-se com intensidade. Dragor sentia-os
ainda no início da subida, mas já se ouvia perfeitamente o estrondo que ambos
causavam.
- Consegues
falar com esses dois iguais a mim?
- Consigo,
mas eles não me escutam. E é por conseguir falar com eles, que eles não me
querem vivo. – a sua voz falhou-lhe ligeiramente.
Kiloren
entesou o seu corpo, mas achou que seria melhor não se tornar lobo. Em vez
disso, olhou com um olhar duro sobre Dragor, e ao vê-lo, apesar do seu corpo
alto e forte, com um ligeiro medo, normal até nos seres mais fortes quando
confrontados com inimigos difíceis, Kiloren disse.
- Eles sabem
que estou contigo? – a sua voz saiu forte e pareceu estremecer a montanha.
- Eles
pressentem uma presença, através do cheiro, mas não sabem aquilo que tu és. –
olhava o vazio enquanto dizia estas palavras, tentado perscrutar o horizonte
para ver se se aproximava alguém.
- Eu
sinto-lhes o cheiro. – inclinando suavemente a cabeça para trás – Parece-me que
reconheço este cheiro de algum lado, mas não me consigo lembrar de onde.
Um momento de
silêncio encheu o ar, enquanto o vento uivava por entre as montanhas. O frio
gelava as faces de ambos, mas isso não era problema. Aproximava-se, a boa velocidade,
algo mais mortífero, muito mais perigoso que vento gelado. Ouvia-se o mover rápido
das patas na rocha negra, iguais a chuvas torrenciais.
A manhã
avançava, e com ela nuvens, anunciando tempestade. No fundo, apareceram duas
imagens negras, como que esculpidas naquela rocha da mesma tez. Avançaram,
mantendo-se, ora sobre as patas traseiras, ora sobre as quatro patas. Mas cada
vez que se apoiavam nas patas traseiras, os seus corpos erguiam-se altos e
assustadores. Kiloren olhava-os sem medo, imóvel. Dragor respirava fundo, e
agora olhava-os demoradamente.
Um rasgo de
fúria, e atiraram-se os dois na direcção de Dragor, desconsiderando a presença
de Kiloren. Eram dois predadores ferozes i incontroláveis, esfomeados por uma
presa fresca e suculenta.
Os seus
gritos de fúria ocultaram o uivar de Kiloren, enquanto este se transformava em
lobo. Um lobo maior e mais possante que qualquer um dos dois. Atirou-se
frenéticamente sobre o lobo que estava mais próximo, mas o impacto foi tal, que
o outro lobo foi também derrubado. Surpreendidos, olharam-no, e reconheceram-no
imediatamente. Tinha sido a besta, que tinha tomado conta do corpo de Kiloren,
que os tinha transformado em tal. A sua raiva aumentou com o seu espanto, e
desta vez, desconsideraram Dragor, para ambos atacarem Kilorem. Atiraram-se
sobre o seu corpo, mas Kiloren esquivou-se por debaixo deles, fazendo com um
único golpe, arranhões sobre o abdomen de ambos. Mas tal ferida superficial não
ia fazê-los parar. Deslizaram ainda por um instante na neve, após terem
aterrado sobre os quatro membros, voltaram-se rapidamente para Kiloren, e
prepararam logo outro ataque. Kloren apenas teve tempo de se desviar para o seu
lado direito. Olhou-os, e os seus olhos eram vermelhos, um vermelho escuro que
parecia concentrar toda a fúria e raiva, e a parte que deveria ser branca, era
negra. Olhavam-no com muita intensidade, desconfiança e terror. Kiloren,
olhou-os, e jugou-se sobre um deles.
A tempestade
começou, mas não era neve que caía. Um granizo forte fustigava-os, e fazia-os
deambular, sobre o impacto forte de pedras de gelo. Kiloren não parou o seu
ataque, apesar do recuo dos outros dois lobos. Um golpe certeiro, e a garganta
de um dos lobos ficou rasgada. O sangue jorrava sobre o manto branco que cobria
a montanha. Uma ferida aberta, mortal. Era de um vermelho escuro, quase negro,
e o seu cheiro era como o cheiro do fel. O outro lobo foi deixado quase em
transe. De alguma forma, Kiloren olhava para este desenrolar, e parecia-lhe
estranhamente familiar, apesar de ele não se recordar de onde.
O lobo que
tinha sobrevivido, recuou bastante, até que fez entender o seu desejo de se ir
embora. O medo e o receio fizeram-no abandonar a sua forma de lobo, contra sua
vontade. Quando ele se virou, para descer por onde tinha subido, Dragor surge
na sua frente, empunhando um machado grande e bem afiado, disferindo um golpe
de alto a baixo sobre o lobo. Este só teve tempo de desviar, mas a sua rapidez
como humano não levou a melhor, e Dragor ceifou-lhe uma mão, a esquerda. O lobo
soltou um grito, que fez a montanha rugir com ele. Kiloren e Dragor
estremeceram perante tal grito. Era um grito de dor, mas a sua força parecia
relampejante, e constante como são as ondas do mar, de uma dor tão intensa, que
até a montanha sentiu.
O sangue
jorrava violentamente sobre a neve, mas ele correu como se nem sentisse a dor.
O seu sangue quente derretia a neve, e o seu sangue misturava-se com a água que
se transformava na neve.
A sua imagem
perdeu-se no horizonte, no meio da tempestade. Dragor olhou Kiloren assustado,
mas Kiloren estava mais espantado com a força que aquele homem lobo tinha. A
mão do lobo ainda mexia, contraindo dedo por dedo, como se tivesse vida
própria. Por fim, deixou de mexer, acalmando Dragor.
Passaram-se
dois dias, e apenas o silêncio envolvia a caverna. Kiloren não tinha achado a
confiança, nem a ajuda que procurara em Dragor.
Procurou na
sua mente a imagem do homem a quem Dragor tinha cortado a mão, e após algum
tempo, lembrou-se da primeira aldeia que tinha sido atacada por ele. Dos poucos
que tinham escapado à besta, este era um deles.
- Dragor, eu
tenho de seguir o meu caminho. Tenho de encontrar Bellanna.
- Bem sei meu
amigo. O mundo está a tornar-se cada vez mais num sítio inóspito.
- Impossível
é deixar de pensar que parte disto é minha culpa. – a sua voz era monótona e
vazia.
- Acho pouco
proveitoso estares a culpar-te por algo que esteve fora do teu controlo durante
muito tempo. Agora sim tens força e poder para modificar algo.
Kiloren não o
olhou. O peso que sobrevinha sobre o seu peito era muito forte. Sentia-se o
criador daquelas criaturas hediondas, iguais a ele em muitos sentidos.
- Tenho de
ir.
Estas foram
as últimas palavras para Dragor. Kiloren saiu entristecido da caverna, e
taciturno, desceu a montanha, que com tanto ânimo tinha subido. Sentia que à
volta de Dragor havia um mistério, que ele não queria conhecer. Parecia-lhe
demasiado perigoso para o seu bem estar.
Demorou mais
tempo a descer, que tinha demorado a subir. A imagem que antes lhe tinha dado
algum alento, de pureza e verdade, agora assombrava-o como uma sombra temerosa.
O frio parecia fustigar-lhe o corpo, algo que ele não sentira totalmente
durante a subida. Sentia-se desaparecer na imensidão da montanha, como se esta
mergulhasse sobre ele.
Finalmente no
sopé da montanha, olhou para trás, encarando o que tinha descido, e o tormento
que aquilo lhe causava. Ficou tão pouco tempo, e fora o tempo suficiente para lhe
mostrar horrores que ele desconhecia. O dia era escuro, antagonizado por uma
série de nuvens cinzento escuro, e uma leve brisa que antevém a tempestade.
Tinham chegado os dias tortuosos das chuvas. O cheiro a alecrim acompanhava a
brisa, que começava a ganhar intensidade, e uma certa humidade, como pequenas
gotas de orvalho que viajavam como leves folhas. A tempestade rapidamente
ganhou intensidade, e Kiloren foi banhado por torrentes caídas dos céus.
O seu corpo
molhada parecia não sentir a chuva, e à sua volta surgia um vapor da água que
evaporava do seu corpo. Ele não parou a sua caminhada sem destino. A sua
preocupação era Bellanna, e nada o impediria de a procurar. Não sabia por onde
começar, mas conseguiria achá-la, nem que por isso tivesse de percorrer todo o
mundo até então conhecido.
V Capítulo
-
Um Pequeno Erro -
A luz do sol
era trémula, e Kiloren sentia-se cansado para prosseguir mais. Não sabia onde
estava, nem sabia onde procurar Bellanna. Tinham-se passado então cinco meses e
meio, desde que ele a tinha visto pela última vez. Recordou na sua mente esse
momento, e chorou amargamente a sua decisão. Mas sabia ter sido a melhor.
Sentia que ela estava bem, e sentia o seu amor, e isso consolava-o. Mas sentia
mais medo que nunca. Existiam mais seres como ele, e ele não a podia proteger
deles. Sentia-se impotente e angustiado. Era uma infeliz realidade com a qual
tinha de viver, até voltar a encontrá-la.
A manha
seguinte não regressou menos sombria, mas a chuva já não era tão forte. Tentou
com todos os seus sentidos, que estavam todos eles mais apurados, procurar
Bellanna, mas não lhe sentia o cheiro, não lhe ouvia a voz, a sua imagem não
surgia à distância que ele conseguia visualizar. Sabia que tinha de continuar a
sua procura noutro lugar.
Durante
vários dias caminhou, completando assim o sexto mês, altura a qual Bellanna foi
atacada pelo lobo, que por sua vez, tinha voltado por onde tinha saído, com um
pedaço do vestido dela no focinho. Kiloren, dois dias após esse incidente,
passou junto do pântano onde Bellanna agora sitiava morada. O seu apurado
olfacto, ao sentir o cheiro de putrefacção do pântano, retraiu-se. A sua
expressão tomou um aspecto estranho, e até cómico, não fosse a situação. Os
dias continuavam cinzentos, e não mostravam sinais de voltar a deixar passar
brecha de sol nos próximos dias.
A voz de
Bellanna ecoava na sua mente. As saudades já eram muitas. Contornou o pântano.
Não acreditava que a sua amada estivesse num sítio tão podre, tão malcheiroso.
Conforme ia contornando o pântano, evitando ao máximo proximidade com aquele
cheiro que lhe feria o olfacto, sentiu o cheiro de Bellanna. De início julgou
que a sua mente lhe estivesse a pregar partidas, mas rapidamente esqueceu essa
possibilidade, e sentiu-se tão feliz de ter encontrado uma pista que o poderia
conduzir à sua amada, que a alegria transbordava do seu interior.
Farejou
cantos e recantos à procura de um sentido, de uma direcção. Sentiu-se dividido,
quando sentiu o cheiro seguir em duas frentes, uma em direcção ao pântano, e a
outra na direcção oposta. A chuva e o vento tinham estragado qualquer
possibilidade de encontrar pegadas, o que levou Kiloren a guiar-se pelo lógico.
Não acreditava que a sua amada tivesse seguido o caminho que leva ao pântano. A
sua imundicie não lhe parecia algo que atraisse Bellanna, mas que, uma vez
deparada com o que apresentava à sua frente, voltaria costas no sentido oposto.
E foi este o caminho que Kiloren tomou.
Voltou costas
ao pântano, e seguiu na mesma direcção que o lobo tinha seguido, julgando que
seguia Bellanna. Caminhou velozmene, mas não queria transformar-se em lobo,
pois receava a reacção de Bellanna se o visse no seu estado horrorífico. Apesar
de ser um lobo esbelto, tanto na sua constituição física, bem como em tudo o
resto.
Seguindo
erroneamente um lobo, Kiloren atrevessou por entre as montanhas de Foshim e
Ashim, uma cordilheira composta por escarpas e ravinas de um lado e doutro, de
uma cor de terra escura, um castanho quase negro. Uma passagem árida, mas cheia
de curvas e ventos fortes, tempestades de areia, que dificultam a passagem.
Daí, foi levado até às terras de Bachese, onde se encontram as montanhas de
De-Lähm. Estas iniciam-se num ponto central, e repartem-se em cinco direcções.
Kiloren foi induzido para as que ficavam a sudoeste.
Kiloren foi
levado pelo erro que engana o coração, que se deixa ensoberbar pelo desejo,
desconsiderando sinais que sempre estiveram presentes. Durante todo o caminho,
sentira o cheiro de um lobo, mas nunca pensara noutra possibilidade, que não a
de ser Bellanna a caminhar por entre aquelas terras. Contudo, o infurtúnio
também rondou Kiloren, pois durante todo esta caminho, nunca foram visíveis as
pegadas deixadas pelo lobo, algo que fez com que Kiloren não se desacreditasse.
Ao fundo
surgiu a imagem de um espigão negro, que parecia ter sido esculpido na rocha.
Parecia querer rasgar o céu com o seu pico de um negro luzidio. Era brilhante
em todo o seu esplendor. Continha um valor que enlaçou Kiloren, e o fez avançar
com mais celeridade. O cheiro de Bellanna era mais intenso conforme ele se
aproximava.
Era um
monstro. A torre que se elevava na sua frente era impossível de medir. Era bela
em esplendor, e cheia de um mistério aterrorizador, que de certa forma era
atraente. Do seu interior vinha um cheiro a enxofre e vísceras. A beleza
exterior era inconjugável com o mau cheiro que vinha do seu interior. Os portões
erguiam-se altos e igualmente negros. Ele chegou-se a eles, e olhou para o seu
interior, sem conseguir ver um ínfimo de luz proveniente do seu interior. Um
rosto surgiu à sua frente tão rapidamente, que o fez saltar para trás. Não era
um rosto que ele alguma vez tivesse visto. Uma raça que para ele era
completamente desconhecida. Este ser estranho e horrendo, ao vê-lo, sentiu-se
tão espantado como amedrontado, abrindo urgentemente os portões, e deixando-o
entrar, com vénias e continências, de tão atarantado que estava. Kiloren
tentava pedir que ele lhe indica-se alguém com que pudesse falar, mas aquele
estranho ser nada lhe dizia.
Entrou
perdido, e com o cheiro de Bellanna camuflado por tantos outros cheiros. Dias
atrás tinha rejeitado a hipótese dela ter entrado num pântano, contudo tinha
entrado num sítio sem luz, e com um cheiro bem pior, apenas porque tinha
seguido o cheiro de Bellanna durante vários dias. Sentia-se perdido no meio de
uma escuridão imensa, que não tinha regresso.
Para onde
quer que olhasse, via seres daquela estranha raça, a olhá-lo com temor. Alguns
tremiam perante a sua passagem. Outros sentiam-se orgulhosos por o verem. Mas
ele não compreendia o porquê de todo aquele aparato.
O interior
daquela torre começava a iluminar-se lentamente, aparentemente com a luz de
fogo. Era composto por vastas galerias, e caminhos apertados. Um composto de
labirintos com amadilhas e perigos constantes, para quem quer que entrasse sem
ser convidado. Nas galerias, que pareciam ter sido rebentadas dentro da rocha,
um trabalho de anos, ou assim julgava ele, estavam seres da raça que ele não
conhecia. Crianças e adultos, machos e fêmeas, contudo a presença de velhos era
quase nula. Ali as crianças brincavam, os adultos olhavam por eles, e alguns
trabalhavam ali mesmo. Assemelhava-se ao comportamento de uma tribo ainda no
seu início.
Avançou
calmamente por entre essas mesmas galerias, e perante a sua presença, tudo
parava. As crianças perdiam o seu comportamento infantil, os adultos
afincavam-se mais avidamente aos seus trabalhos, e aqueles que não tinha nada
para fazer, prestavam as suas saudações, como se se tratasse de alguém
importante para eles.
Finalmente,
um dentre esses, possivelmente o mais velho, dirigiu-se a ele, e fez sinal para
que o seguisse. Kiloren fê-lo, e seguiu atrás daquela criatura que tanto
parecia um homem, como parecia um pedaço de rocha ambulante. Chegados junto a
uma parede, esse velho indicou-lhe que seguisse em frente.
O corredor
avizinhava-se escuro como breu. Sobre o olhar normal, seria impossível de ver o
que quer que fosse, mas Kiloren sempre via o mínimo tolerável, uma vez que a
sua visão era incomun. À sua frente, surgiu um lance de escadas em caracol. Era
íngreme, mas as escadas eram largas. No meio de uma escuridão constante,
Kiloren perdeu a noção da quantidade de tempo que levou a subir. Mas quanto
mais subia, mais o cheiro a enxofre desaparecia, e o cheiro de Bellanna se
intensificava novamente. Contudo, muitos outros cheiros se perpetuavam naquelas
escadas. Os ruídos intensificavam-se. Vez por outra, surgia na subida uma
porta, que dava para uma ampla sala, a qual tinha algumas janelas, contudo, a
escacez de janelas era notória.
Chegou então
ao cume das escadas, e do seu interior vinha o cheiro de Bellanna. Mas não só o
dela. O seu espírito inquietou-se, e sentiu-se como que perdido, igual ao
marinheiro que investe mar adentro sem rumo, e só depois se preocupa com a
escacez de víveres. Do interior dess asala vinha alguma luz, mas igual às
outras, era pouca e insuficiente. Duas imagens surgiram do interior. Um homem
alto, desprovido de cabelo, e um animal junto dos seus pés. Parou à porta, mas
uma voz o fez estremecer.
- Entra
Kiloren. Tenho andado à tua procura. – a voz era como mil relâmpagos, medonha e
imponente.
- Quem sois
vós? – a voz de Kiloren saia trémula, apesar da sua postura se manter
intocável.
- Não passou
assim tanto tempo desde a última vez que nos vimos, e já não me reconheces? –
era deveras assustadora a sua voz.
- A escuridão
é grande pra lhe conseguir reconhecer as feições. – Kiloren sentia-se fraquejar
de cada vez que aquele ser fala.
Movimentou-se
calmamente em direcção a uma das janelas, e removeu da sua frente como que uma
tampa que tapava a luz. Visto de costas, era um homem normal. Tinha a cabeça
desenhada, envergava uma capa negra e escarlate, que descia além dos pés.
- Ainda não
me reconheces? – Kiloren não sabia o que responder. E procurando indícios,
olhou para o animal.
O sangue
gelou-lhe nas veias. Era um lobo. E o lobo tinha a mesma marca que aquele que o
tinha atacado, e junto dele estava um pedaço de tecido, que Kiloren sentiu
emanar o mais doce e perfeito perfume que alguma vez tinha sentido, o de
Bellanna.
- Quem sois e
que lhe fizeste? – vociferou Kiloren, ordenando uma explicação.
- Sabes quem
sou pois me conheces de à muito. E quanto a esse pedaço de tecido, não sei a
quem pertence, mas como tinha o teu cheiro, e o meu lobo tinha ordens de
encontrar-te, ou encontrar pistas tuas, ele trouxe-me isto. – estava calmo, mas
esperava entretidamente pela resposta de Kiloren.
- Então
fostes tu quem mandou esses lobos atacarem-me? – sentia-se revltado, e ao mesmo
tempo com medo, muito medo, pois aquele homeme parecia detentor de algo
grandioso.
- Sim, fui
eu, mas não mandei que te matassem, apenas que te encontrassem. – e dito isto,
começou a virar-se lentamente.
A expreção de
Kiloren mudou de raiva, para completo desalento, baralhação e receio. Não sabia
nem o que dizer, e muito menos o que pensar. Sentia-se confuso. O homeme que
parava à sua frente, era o seu irmão Philorem.
- Tu?! –
disse Kiloren após um bom bocado.
- Sim, eu.
Após me teres deixado na gruta de Ânli, eu caminhei onde os meus pés me
levaram, e enquanto erguia esta torre, pedi a estes meus fiés subditos para que
te encontrassem. – mesmo a falar calmamente, a sua voz tomava um timbre tão
alto que era aterrorizador. Toda a torre tremia com a sua voz.
- Julgava-te
perdido…
- Mas
achei-me. E agora meu irmão, tenho pena de te informar, mas o meu destino é
outro, diferente daquele que nos traçava a vida. Agora sou senhor do meu
destino.
- E que
pretendes fazer?
- Não julgues
que to direi. Não enquanto não te vergares perante a minha vontade. E como sei
que tal não reside no teu íntimo, pois sinto-o, não te direi qual é a minha
vontade. Contudo, de algo tenho a certeza, de tudo sou capaz, e farei muito
mais que qualquer outro jamais fez, e jamais fará.
Kiloren não
queria acreditar no que ouvia o seu irmão dizer. A vontade do seu irmão só
podia ser aterrorizadora e medonha. Exaltando-se, e a raiva crescendo dentro de
si, a voz de Kiloren engrandeceu-se, bem como a sua vontade, e Kiloren fez
frente ao seu irmão.
- Por tua
causa, quase matei quem amo. Por tua causa, me tornei num ser desprezível e
medonho. Por causa dessas tuas bestas inanimadas, que se vergam perante a tua
mão quais bonecos de pano.
Philorem
riu-se, e a sua gargalhada ecoava além da sua magnificiente torre. Kiloren
olhava-o com as faces encarnadas de raiva contida no seu íntimo.
- Como ousas
dizer-me tais coisas Kiloren? Nem sei do que falas.
Kiloren
enervou-se de tal forma, que perdeu durante pouquíssimos segundos o controle, e
atirou-se ao seu irmão, que estando desprevenido, levou com um lobo em cima,
que segundos atrás era o seu irmão. O pequeno lobo, comparado com Kiloren, de
Philorem atirou-se raivosamente contra Kiloren, mas este, com uma mão, fez ele
voar janela fora, como se de um trapo se tratasse. Philorem, apesar de ter um
enorme lobo sobre o seu peito, prestes a degolá-lo, parecia divertido com toda
aquela situação. Enquanto isto, o lobo que tinha voado janela fora, embateu no
chão, com tal força derivada da queda, que se desfez em ínfimos pedaços. Um
daqueles seres daquela estranha raça reparou de quem se tratava, e pegando em
mais uns seis, começaram a subir a escadaria.
No cimo da
torre, Kiloren ainda estava sobre o seu irmão, enquanto que este segundo
parecia divertido com a situação. Levado pela raiva, Kiloren vai a desferir um
golpe na garganta do irmão, terminando com ele, quando este o empurra com as
duas mãos, com uma violência tal, que o faz voar a sala toda, até embater
violentamente contra a parede. Kiloren sentiu dentro de si algo a ceder, mas
não sentia dor. O seu irmão já se tinha levantado, quando Kiloren fez uma nova
investida. Contudo, sobre todos os ataques que ele fazia sobre o seu irmão,
este os defendia, e sempre que lhe apetecia, atacava ele, embatendo sempre
violentamente no corpo de Kiloren.
Ele
deambulava de um lado para o outro, fazendo sucessivas investidas sobre o corpo
do seu irmão, sem nunca o conseguir atingir, mas sendo sempre atingido. De mão
aberta, ele desferia golpes no peito de Kiloren, ora fazendo-o recuar largos
passos, ora fazendo-o voar de um lado da sala até à outra.
Philorem
desviava-se elegantemente de Kiloren, enquanto que o seu irmão pisava com
violência o chão que sustentava ambos. Ele era peso bruto, e cada passo dele
ecoava nas escadas que levavam aquela sala. Cada vez que ele voava contra a
parede, a torre estremecia. Mas nada o fazia parar.
Era uma luta
sem armas, e Kiloren estava a perdê-la, coisa que nunca lhe tinha acontecido
desde que se tinha transformado em lobisomem. Nem a força, nem a velocidade,
nem a agilidade que ele tinha ganho ao transformar-se em lobisomem, eram par
para o seu irmão.
À entrada da
sala, tinham-se ajuntado alguns seres, a verem aquele duelo entre dois seres
medonhos. O espanto nas suas expressões facias era bastanta visível. Alguns
recuaram com medo que a luta se alastra-se para cima deles, mas isso não
aconteceu.
Philorem,
olhava o irmão transformado, e sentia orgulho. Sentia que sim, aquilo era obra
sua. E que obra. Rápido, feroz, mortífero. Sentia-se contente. E o melhor, é
que era menos forte que ele. Mas mesmo se fosse, isso não constituiría
problema. Quando já se estava a cansar daquilo que para si não era um duelo,
mas sim uma briga de crianças, Philorem largou sobre o seu irmão uma magia, que
o fez ficar com os movimentos presos, como um animal no seu casulo, e Kiloren
não conseguia desprender-se daquele casulo invisível.
- Que me fizeste?
Seu…
- Apenas algo
para que não me venhas a chatear nos proximos tempos irmão. – o sarcasmo nas
suas palavras era evidente – mas sou capaz de muito mais meu querido irmão.
Tanto, que tu nunca conseguiras imaginar.
Kiloren
tentava libertar-se, em vão, sem nunca perder a esperança. Até que o cansaço
levou a melhor, e voltando à sua forma de humano, deixou-se cair de joelhos no
chão, sem forças para continuar. Aqueles que olhavam da porta, soltaram
barulhos de espanto, ao verem surgir algo que nunca tinham visto, um homem que
se transforma em lobo, e que se volta a transformar em homem.
- Vejo que
espantaste o meu povo – disse Philorem, sempre com o sarcasmo e o cinísmo
presente nas suas palavras.
- Teu povo?
Que seres são estes que não se assemelham com nada que anda sobre a terra?
- Afirmas
conhecer todos os seres que caminham a terra?
Kiloren
sentiu-se algo perdido nas suas afirmações. – Não, obviamente. Mas destes sei
que não os há.
- Pois não
meu bom irmão. Estes são debaixo da terra. Orcs, ogres, e balrogues, entre
algumas raças de goblins. Seres que até hoje nunca tinham pisado a terra.
Kiloren
sentia a sua força a abandoná-lo. Sentia-se como que asfixiado. Aprisionado por
uma magia que era para ele uma novidade, não deixando de ser completamente frustrante.
Philorem olháva-o, como se estivesse a olhar para um animal, e ordenou aos seus
orcs que o levassem para as profundezas da torre, onde não havia luz, onde o
cheiro a enxofre era intenso, para lhe quebrar o espírito. Para o saturar,
fazendo-o até mesmo esquecer Bellanna. Mas ele não sabia que Kiloren e Bellanna
comunicavam por meios, que nem mesmo a mente conseguia quebrar.
Para Kiloren,
não era necessário grilhões ou correntes, pois a magia que o irmão lhe tinha
feito parecia inquebrantável. Para ele comer, era necessário que alguém o
alimenta-se, e para fazer todo o resto, quando alguém se lembrava, ajudavam-no.
Se ninguem se lembrasse, então ele tinha que se aguentar conforme estava.
O único
consolo, era saber que a sua amada Bellanna ainda o amava, e que estava bem.
Pois, todo o resto eram sombras, umas formas mais escuras que outras, mas tudo
era em tons de escuridão. Era raro Philorem descer até à sua cadeia, lugar onde
os dias eram noites intermináveis, e onde não havia tempo. Das poucas vezes que
ele se dignava a ir ver o seu irmão, prisioneiro, era para o tentar persuadir a
trabalhar com ele. E continuava a manter a sua posição «Enquanto não te
vergares perante a minha vontade, não te revalarei a grandiosidade da minha
vontade».
Desde que iniciara
a sua vida, Kiloren nunca se tinha sentido tão só. Perdera completamente a
noção de tempo, e horars para ele, eram dias, senão semanas. Quanto mais tempo
passava, mais escassa se tornava a água, a comida, e até a pequeba higiene que
lhe era feita de tempoes a tempos. Mas tanto quanto parece, Um lobisomem não
padece de males, e é meramente tola a falta de comida, pois um lobo esfomeado,
é extremamente perigoso.
Bellanna,
após o sétimo mês, decidiu abandonar o pântano, com muita tristeza dos pequenos
goblins, que agora quase que a idolatravam. Ela sentia-se bem e relativamente
feliz com os seus pequenos goblins, mas só isso não bastava. Precisava
encontrar o seu Kiloren. O seu amado Kiloren.
Partiu então,
vagueando de terra em terra, deambulando por vales e montanhas, rios e
florestas, por entre a natureza nua de preconceitos, e pequenas vilas em
crescimento, de humanos e de elfos, com os seus costumes e culturas.
Não sabia ela
que o seu amado tinha sido feito prisioneiro do seu próprio irmão. Por muito
que ela o procurasse, jamais o encontraria.
Veio-lhe num
sonho. Bellanna sofre um triste final, morta pelas mãos de duas mulheres. Belas
mulheres, da mesma raça que a sua amada. Uma ferida feita no pescoço, outra no
peito, e a sua sentença é lida. Uma morte triste e satírica. Sem Kiloren a
voltar a ver. Acordou de sobressalto, assustado, apenas para ver que se tratava
de um sonho. Mas sentia que o podia ter tocado, que podia ter sentido o hálito
das outras duas mulheres, o calor que emanava do corpo da sua amada, o trocar
de olhares entre elas, e por fim, o golpe final.
O sangue
gelou-lhe nas veias, só pela mera hipótese de ver a sua mada morta, sem que ele
nada pudesse fazer. Queria rebentar aquela magia, mas estava demasiado fraco, entregou-se
à escuridão, esperando que, não sabia ele como, o destino, ou a vida, fossem
mais justos com ele, e o deixassem salvar a sua amada.
Fim do Primeiro livro “A Vampira e o Lobisomem”